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quarta-feira, 16 de março de 2011

Borderline e a hipermodernidade



Por Roberta de Medeiros

Freud deixou claro que todos nós temos traços neuróticos, ainda que não produzam um incômodo considerável. Esse era um padrão de normalidade que prevaleceu na sociedade vitoriana, na qual o homem respondia com recalque ao julgo da repressão autoritária.

Hoje, quando palavra de ordem é fruição, é a personalidade borderline que se impõe como a normalidade contemporânea, defende analisa o médico e psicanalista Nahman Armony, doutor em Comunicação e professor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro

“Enquanto o neurótico trilhava o caminho do dever e da disciplina, o borderline, livre das amarras da repressão, transgride os limites das convenções sociais dando rédeas soltas à criatividade, pagando, porém, o preço da instabilidade”, compara Armony.

O borderline é um diagnóstico da psiquiatria, cujo quadro se caracteriza pela impulsividade, tendência ao ato, baixa resistência à frustração, instabilidade emocional que oscila do o amor ao ódio, perturbação da auto-imagem e a propensão a se envolver em relacionamentos intensos e instáveis.

Tal como a criança ansiosa por satisfazer seus desejos infantis, o borderline lança mão de todos os artifícios, inclusive aqueles que são contra lei. Ele tem sentimentos crônicos de vazio e demonstra uma busca constante por identificações.

Ao se deparar como pacientes com esse perfil em seu consultório, o psicanalista desenvolveu um estudo em que apresenta uma espécie de borderline não patológico que seria correspondente ao perfil do homem hipermoderno delineado pela sociologia.

A idéia foi defendida em sua tese de doutorado em Comunicação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que deu origem ao livro “Borderline: uma outra normalidade”. Armony reconhece a existência de graus de gravidade da síndrome.

Segundo ele, há realmente um borderline severamente perturbado (borderline pesado) que beira a psicose, mas também existe um outro borderline que se aproxima da normalidade (borderline brando).

“Fui percebendo que as características dos meus pacientes borderlines eram semelhantes aos traços de algumas pessoas do meu convívio, só que em intensidades diferentes. Notei que um grande número de pessoas age de forma borderline. Elas usam os mesmos processos psíquicos, de um modo mais adequado à inserção social”, conta.

Se o borderline pesado tem dificuldades afetivas e nas relações interpessoais devido ao seu narcisismo exacerbado, o borderline brando parece se ajustar a uma sociedade em constante transformação.

De natureza inconstante e sujeito a identificações transitórias, ele navega ao sabor do fluxo vertiginoso proporcionado pela sociedade do chip e do “mass media”. Fluido, ele adota uma ética flexível que o torna adaptável a um mundo de permanentes modificações tecnológicas, econômicas e culturais. 

Ao borderline, interessa um ego sem fronteiras, não a consciência vigilante do homem moderno. Sempre voltado para ação, ele se impõe tal qual a criança radiosa guiada por caprichos à espera de serem satisfeitos numa sociedade hedonista, cujo princípio é o prazer.

Sua intensidade o leva a buscar experiências inéditas, disponíveis graças aos meios tecnológicos que saturam a realidade e hiper-realizam um mundo, onde o importante é o gesto, o processo inventivo. O borderline se deixa seduzir por uma vida que, caoticamente, fragmenta-se em signos, imagens e dígitos. Tudo se revela leve e sem substância, como o sujeito hipermoderno.

Segundo Armony, o borderline brando nem segue os cânones do social como o neurótico, nem se dispersa improdutivamente como o psicótico. Seu mundo de fantasia, fortemente impregnado de afeto, pressiona no sentido da realização. Ele não desiste de realizar os seus desejos infantis no social.

A realidade impregnada pela fantasia e a fantasia, realizando-se no social, faz do borderline uma realidade cultural renovadora. O borderline é capaz de colocar de forma palatável para a sociedade suas fantasias. 

Isso só é possível graças à identificação contínua e transitória do borderline com as pessoas e com o mundo, deixando-se permear pelo ambiente à sua volta – um processo que se autor chama de identificação “dual-porosa”.

O autor lembra que “o borderline pesado tenta tapar o seu vazio através de relações simbióticas; suas carências, embora eventualmente preenchidas, permanecem atuantes, podendo criar cegas exigências excessivas nos relacionamentos afetivos, sociais e profissionais, o que certamente causará transtornos. Já o borderline brando sobreleva seu vazio através de uma identificação dual-porosa com os seres humanos e com o mundo”.

O borderline não é mais mortificado pelo recalque como o neurótico da sociedade moderna. Não carrega dilemas de natureza ética, ele se deixa guiar pelas impressões estéticas. Múltiplo, inconstante, dono de uma identidade flexível, ele embarca num processo lúdico, transformando sua própria existência em uma obra de arte.

“Creio que não será nenhum abuso dizer que o artista talentoso recria magicamente o mundo através de sua arte, mesmo porque essa idéia permeia nossa subjetividade. Borderline e artista talentoso, quando não coincidem, encontram-se. Ambos recriam magicamente a realidade. O artista através da obra de arte e o borderline através da transformação da vida em obra de arte", afirma Armony.

Segundo o psicanalista, o borderline brando é capaz de realizar suas fantasias no social como o homem hipermoderno seria artista da vida, uma pessoa que vive criativa e apaixonadamente a própria existência.

Ele lembra que todos somos artistas na medida em que criamos nosso estilo de vida. O artista é aceito pelo social. O seu atrevimento já é esperado pela sociedade.

“Antigamente o artista poderia ser vaiado, como aconteciam com as óperas. Van Gogh, por exemplo, morreu sem que suas obras fossem reconhecidas. Mas atualmente uma pintura estranha ou uma música dissonante são tomadas como válidas.

A modernidade sólida não aceitava que existissem estilos de vida diferentes dos convencionados. A modernidade líquida, isto é, a hipermodernidade, já aceita que cada um produza esteticamente seu estilo de vida”, explica.

Segundo Armony, como o borderline não passa pela repressão, ele quer que sua realidade interna se realize imediatamente no social. Ele o faz independente de ser mais difícil ou mais fácil.

Ele o faz magicamente porque ele não percebe as dificuldades reais existentes. Muitas vezes isso dá certo. Se ele tem uma idéia original, estranha à sociedade, ele não desiste de realizá-la. Ele é insistente. Ele então pode criar uma nova realidade para a sociedade ou responder a um desejo dessa sociedade, que virá a aceitar sua fantasia.

Segundo Armony, o encontro de dois borderlines brandos pode ser um acontecimento, no mínimo, curioso. Isso porque o psiquismo de um permeia o psiquismo do outro. Essas pessoas realizam trocas de afetos e fantasias sem perder a sua individualidade. Elas estão em identificação mútua contínua.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na sua IV versão, o transtorno de personalidade borderline é indicado quando presente cinco ou mais dos seguintes critérios:
(1)   esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginado
(2)   um padrão de relacionamentos instáveis e intensos, alterando entre a idealização e a desvalorização
(3)   perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem
(4)   impulsividade em pelo menos duas das áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (por exemplo sexo, gastos financeiros, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivamente)
(5)   recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante
(6)   instabilidade afetiva devido a acentuada reatividade do humor e sentimentos crônicos de vazio
(7)   raiva intensa ou dificuldade em controlar a raiva (por exemplo, demonstrações freqüentes de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes)
(8)   ideação paranóide transitória relacionada ao estresse.

Publicado na revista Psique

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