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segunda-feira, 21 de março de 2011

Psiquiatria e espiritismo



Por Roberta de Medeiros

O médico Sigmund Freud (1856-1939) considerou a religião como remédio ilusório contra o desamparo. A crença na vida após a morte estaria embasada no medo da morte, análogo ao medo da castração. Nesse caso, o ego estaria reagindo à situação de abandono.

Para ele, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos que foram reprimidos. Os espíritos que se comunicam durante os estados de transe e possessão seriam apenas a projeção dessas entidades mentais para o mundo externo. 

Da mesma maneira que o fundador da psicanálise,  a psiquiatria tendia a tomar como patológicos certos comportamentos religiosos. A visão negativa por parte dessa classe seu origem a reações discriminatórias, principalmente em relação ao espiritismo e a religiões afro-brasileiras, cujas experiências foram interpretadas como manifestação (ou causa) de doenças mentais.  

Um acalorado debate entre médicos e espíritas se estendeu entre a segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20. Médicos chegaram a publicar artigos e teses sobre a chamada “loucura espírita” e a necessidade de combatê-la a partir da proibição da divulgação da religião e o combate ao charlatanismo praticado por seus seguidores, freqüentemente acusados de exercício ilegal da medicina ao tratar pacientes com doenças mentais. Em contrapartida, os centros espíritas produziam teses tentando legitimar suas crenças e fundaram seus próprios hospitais psiquiátricos.

Entre os médicos, surgiram duas correntes proeminentes: uma delas pretendia avaliar como os fenômenos mediúnicos poderiam oferecer elementos para melhor compreensão do funcionamento da mente e outra que se ocupou de combater a religião e considerou as manifestações mediúnicas como doença mental– essa foi a que mais influenciou os psiquiatras brasileiros.  

Eles se basearam na teoria do médico e psicólogo Pierre Janet (1859-1947) sobre automatismo psicológico. Em sua obra “L´Automatisme Psychologic”, ele define a mente a partir do funcionamento integrado de diversos módulos mentais independentes (memória, percepção, afeto, sensação). Quando um desses módulos começa a funcionar de modo independente, teríamos o que o pesquisador chama desagregação psicológica ou dissociação.

Esse funcionamento independente da consciência Janet chamou
de automatismo mental.  Ele propunha a existência de uma “segunda consciência”. Quando a personalidade se desagrega, uma parcela dela pode se desgarrar do conjunto e dar origem a diversos automatismos motores e sensoriais.

Daí os fenômenos como a escrita automática, personalidades múltiplas anestesias, catalepsias, sonambulismo, e alucinações. Ele não acreditava que as experiências mediúnicas pudessem, de fato, serem originadas pelo contato com espíritos.

“Em muitos casos há o simples desdobramento da personalidade – a identidade segunda – dizem-se espírito – exprimindo pensamentos latentes do médium: é o treino da mitomania”, escreveu Janet.

Outro a se dedicar ao tema foi William James (1842-1910), um dos psicólogos mais importantes de todos os tempos. Seus estudos sobre a religião resultaram em seu famoso livro “As variedades da experiência religiosa” e a então chamada psychical research (pesquisa psíquica).

Defensor do “empirismo radical”, acreditava mesmo os fenômenos mais absurdos eram passíveis de análise. A investigação da mediunidade recebeu especial destaque. E por mais de duas décadas, realizou pesquisas com uma das mais renomadas médiuns do século 19, Leonore Pipe.

O pesquisador considerava a possessão mediúnica uma forma natural de personalidade alternativa, sem necessariamente ter um caráter patológico. Entre as possíveis explicações para os fenômenos mediúnicos estariam a fraude, a dissociação com uma tendência a personificar uma outra personalidade e a influência de um espírito. Ele considerava que a telepatia e a real comunicação de um espírito poderiam explicar essas experiências religiosas.

Apoiado em estudos sobre telepatia, hipnotismo e alucinações, o pesquisador inglês Frederic W. H. Myers considerou os fenômenos mediúnicos como manifestação do subconsciente. Desenvolveu a teoria do “self subliminal”.

Existiria “uma consciência mais abrangente, mais profunda, cujo potencial permanece em sua maior parte latente”. Utilizou a palavra subliminal para designar “tudo que ocorre sob o limiar ordinário, fora da consciência habitual”.

Haveria apenas um Self, com uma pequena porção consciente (supraliminal) e grande parte inconsciente (subliminal). Os conteúdos subliminais que atingem a consciência freqüentemente são diferentes de qualquer elemento de nossa vida supraliminal, inclusive faculdades das quais não há conhecimento prévio.

Essas habilidades, como as inspirações dos gênios, telepatia, clarividência e mesmo a comunicação com os mortos, envolveriam uma grande ampliação das faculdades mentais. Sua principal obra, “Human Personality and Its Survival of Bodily Death”, foi deixada incompleta e só foi publicada depois da sua morte.

Outro estudioso que se dedicou aos temas ocultos foi psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), autor de “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenômenos Chamados Ocultos”. Como Janet, explicou a comunicação com os espíritos a partir do subconsciente.

“A grande maioria das comunicações tem origem puramente psicológica e só aparecem personificadas porque as pessoas não têm noção nenhuma da psicologia do inconsciente”, escreveu. Outros escritos, porém, revelam que ele tinha dúvidas quanto à origem dessas manifestações: “Para mim, eles são inexplicáveis e sou incapaz de decidir a favor de qualquer uma das interpretações usuais”.

Na experiência mediúnica, haveria uma desagregação de “complexos psíquicos”, o que dependeria de certa predisposição. Com a prática da capacidade dissociativa, haveria cada vez mais elaboração das manifestações mediúnicas. Assim, os espíritos se multiplicam.

Outro elemento que também explicaria o transe é o chamado “aumento do rendimento inconsciente”, ou seja, “aquele processo automático cujo resultado não está ao alcance da atividade psíquica consciente do respectivo indivíduo”. Como a manifestação do inconsciente, o médium pode exibir uma inteligência superior, como ter acesso a informações não disponíveis na vigília.

Jung pondera a possibilidade de que a personalidade comunicante seria a personificação de um arquétipo ou realmente um espírito:“No caso de Betty (personalidade que se comunica), tenho dúvidas em negar sua realidade como espírito; isto significa que estou inclinado a aceitar que ela seja mais provavelmente um espírito do que um arquétipo, ainda que represente supostamente as duas coisas ao mesmo tempo. Parece-me que os espíritos têm uma tendência cada vez maior de se aglutinar aos arquétipos”.

Com os estudos de neurologia surgidos na década de 1870, os pesquisadores Willian Hammond e George Miller Beard se destacaram na tentativa de demonstrar que o fenômeno do transe tinha causas orgânicas.

Acrescentando novos elementos ao discurso hegemônico, defenderam a tese de uma vida involuntária, semelhante ao conceito de subconsciente, poderia aflorar com uma disfunção cerebral.

Outro teórico da época foi o médico criminologista Cesare Lombroso (1936-1909), autor de “Hipnose de Mediunidade” (1909). Ao sondar o tema com a médium italiana Eusápia Paladino, concluiu que os médiuns tinham comportamentos histéricos.

A vertente que tomou como patológica as vivências mediúnicas considerava as pessoas frágeis e instáveis emocionalmente um alvo fácil da doutrina espírita. Os estudos se concentraram nas mulheres, por serem mais suscetíveis à histeria e serem mais propensas a desenvolver doenças mentais.  

O embate entre psiquiatras e espíritas perdeu força após os anos 50. Nos anos seguintes, surgiu a abordagem transcultural, que adotava uma visão mais antropológica acerca do tratamento dos distúrbios mentais.

Essa abordagem rompeu com o etnocentrismo, afirmando-se sensível as diferentes realidades nas quais ocorre o adoecimento psíquico e incorporando concepções populares sobre a doença no processo terapêutico. Nesse caso, a religião começou a ser vista mais como um colaborador no tratamento do que algo a ser combatido.

Publicado na revista Psique

Um comentário:

  1. Muito bom o texto, Roberta. A ciência não é dona da verdade absoluta, isso seria contraditório pois no método científico vemos o processo de reciclagem das teorias ao lonho do tempo, que mais estudos são feitos.

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