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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Memória apagada

Por Roberta de Medeiros

Depois de ser atacado por um ladrão, o protagonista Leonard Shelby - interpretado por Guy Pearce - assiste a morte de sua mulher e, a partir daí, passa a sofrer de uma doença que o impede de gravar na memória fatos recentes, ele se esquece por completo o que acontece poucos instantes antes.

Esse é o começo de uma jornada com o fim de descobrir o assassino para uma futura vingança. O roteiro de Christopher Nolan nos dá uma mostra do que é vivido por pessoas que sofrem de amnésia, que afeta a memória e o aprendizado, embora demais funções cognitivas e o nível de consciência não estejam alterados.

É normal esquecer coisas. Essa é uma propriedade normal da memória que impede a sobrecarga dos sistemas cerebrais responsáveis pela memorização. É graças ao esquecimento que podemos filtrar o que há de relevante e irrelevante. Mas há casos que o esquecimento é patológico.

O neurologista Ivan Izquierdo, da PUC-RS, um dos maiores pesquisadores da memória no país, diz que a resposta para esse mal está no cérebro: “A memória falha quando as sinapses estão em número diminuído ou estão inibidas ou alteradas”, explica.

Sinapses são estruturas por meio das quais as células cerebrais se conectam, transmitindo informações na forma de sinais químicos e elétricos pelo sistema nervoso.

Cada vez que o córtex cerebral recebe os dados de uma nova experiência, as sinapses formam padrões de comunicação entre os neurônios de diferentes regiões. Algumas redes de células organizam tais informações, comparando-as a outras lembranças já existentes no cérebro.

Conforme a força e o padrão das sinapses, selecionam o que vai ser esquecido ou o que vai permanecer guardado por mais tempo. A maior parte dos detalhes é apagada da lembrança. Mas há aqueles registros que permanecerão por dias, até anos, às vezes de modo inconsciente.

-Perda de neurônios
Em seu livro “Memória”, editado pela Artmed, Izquierdo lembra que é comum na fase adulta ocorrer uma diminuição de neurônios em várias regiões do cérebro. “Raramente essa perda causa déficit de memória antes dos 85 anos, porém, muitas doenças são acompanhadas de uma aceleração da perda neuronal”, observa.

Isso pode acontecer por falta de oxigenação do cérebro, infecção viral ou pode ser desencadeada por certas demências, como Alzheimer, síndrome de Down e doença de Pick. Há ainda demências causadas de traumatismo craniano, comum nos boxeadores (demência pugilística), uso excessivo de álcool, maconha e cocaína.

Em casos de depressão, a amnésia pode surgir sem qualquer lesão.As falhas de memória costumam ser exageradas pelos pacientes, que a percebem como maiores do que realmente são.

Segundo o psiquiatra e psicanalista Maurício Lucchesi, embora amnésia atinja tanto as memórias boas quanto as ruins, o depressivo tem uma tendência a lembrar de acontecimentos negativos.

“A memória é sempre seletiva e depende do humor e do estado psíquico da pessoa. Na depressão existe uma vivência muito forte dos aspectos negativos. O contrário ocorre nos quadros de mania ou hipomania [caracterizados pela elevação do humor, aceleração da psicomotricidade, aumento de energia e idéias de grandeza]. Nesse caso, o conteúdo tende a ser positivo”, compara.

Acontecimentos traumáticos, como uma guerra, um desastre natural ou um acidente aéreo, que geram muito estresse, também podem causar amnésia. Isso acontece porque a pessoa não consegue elaborar a vivência, protegendo-se daquela a experiência perturbadora.
“A memória depende de um registro que é feito pela consciência. Numa situação traumática, a pessoa não tem capacidade de dar sentido, isto é, elaborar a vivência dentro de um sistema lógico para entender o mundo. Por ser um fluxo de excitação muito intenso, as memórias traumáticas não conseguem ser traduzidas”, explica Lucchesi. 
-Tipos de amnésia

Após um traumatismo, por exemplo, a pessoa pode não lembrar de fatos recentes, mas ela consegue lembrar dos fatos anteriores ao trauma. Em casos extremos, a memória poderá durar apenas alguns segundos.

“A pessoa não consegue fixar novas informações é como se tivesse parado no tempo, trata-se de um problema de aprendizado”, explica o médico, neurocientista e psicoterapeuta Cláudio Guimarães dos Santos.

O contrário também pode acontecer: “A pessoa pode não se lembrar de coisas que aconteceram antes do trauma, mas tem a capacidade de se recordar e aprender após o trauma. A pessoa pode ter um abalo em sua identidade pessoal, ela passa a não saber quem ela é, retrocedendo alguns anos em sua vida”, diz.

Há ainda a possibilidade da pessoa vivenciar um esquecimento global por um período que pode variar de 30 minutos a 24 horas. Nesse último caso, as causas ainda não foram esclarecidas, mas há estudos que indicam que esse tipo de amnésia pode ser desencadeado por enxaquecas ou ataque isquêmico transitório, que ocorre em função de um bloqueio de uma artéria, cortando o suprimento de sangue para o cérebro. Apesar de ser uma experiência assustadora, o paciente há boas chances de recuperação.

“Seja qual for a forma que se apresenta a amnésia, o fator preponderante é reconhecer que a pessoa ficou de outro modo depois do sintoma. Existem as classificações, mas a situação concreta nunca se apresenta de uma forma clara. O importante é ter em mente que reabilitar o Pelé não é o mesmo que reabilitar o Osmar Santos”, compara.

Segundo Santos, a reabilitação requer tratamento individualizado, a partir do levantamento biográfico do paciente, levando em conta fatores educacionais, psicológicos e sociológicos. “Normalmente, é enfatizado o aspecto neurobiológico, mas é preciso levar em contas uma série de fatores. Eles são cruciais na gênese do sintoma e na reabilitação”, defende.
Os estudos sobre a memória têm um lugar destacado nesse esforço científico. Afinal de contas, o aumento da expectativa de vida, dá lugar a uma população mais vulnerável à doença de Alzheimer e a outros distúrbios associados à perda de memória. Mas como manter uma memória sempre afiada?

Os estudiosos gostam de dizer que “a função faz órgão”. Isso significa que a melhor forma de manter a memória afiada é exercitando-a. “Parece que a atividade mental devidamente motivada tem fator importante na preservação da memória”, diz Santos.

Quem primeiro estudou isso foi o australiano John Carew Eccles, na década de 1950. Ele examinou sinapses neuromusculares e comparou a forma e a quantidade de neurotransmissor, no caso a acetilcolina, liberado pelo impulso tanto em situações de uso como falta de uso. Ficou claro que o uso melhora a função das sinapses e a falta de uso as atrofia.

-Primeiros estudos
Um caso de grande repercussão na área médica foi o caso de um paciente canadense que sofria graves ataques epiléticos e que foi tratado cirurgicamente em 1953. Neurologistas da época recomendaram uma cirurgia radical que retirasse porções do lobo temporal atingindo o hipocampo.

O resultado: a operação ajudou nas crises epilépticas, mas também produziu um profundo déficit de memória. Vários anos após a cirurgia, o paciente não se lembrava dos médicos que sempre o examinaram e de qualquer fato ocorrido antes da cirurgia, dizia sempre ter 27 anos, embora recordasse vivamente os fatos anteriores à intervenção.

Sua inteligência era normal, era capaz de entender e responder o que lhe perguntavam, de raciocinar e realizar cálculos matemáticos e aprender novos movimentos. Pesquisadores então descobriram que a perda memória não pode ser causada exclusivamente por danos no hipocampo.

“Em muitos casos a região mais afetada é o lobo temporal. O hipocampo opera em conjunto com várias estruturas cerebrais [como amígdala, córtex entorrinal, córtex prefrontal]. Nenhuma região opera isoladamente”, diz Izquierdo.


-Neurogênese
Um dos caminhos investigados pelos cientistas para compensar as perdas de neurônios provocadas pelas demências que incidem sobre a memória é induzir a produção de novos neurônios – o que os especialistas chamam de neurogênese.

Hoje já se sabe que algumas drogas são capazes de detonar o processo de produção de novos neurônios, como é o caso de antidepressivos, estabilizadores de humor, canabis, esteróides e até Viagra.

“O problema é que falta especificidade dos estudos que avaliam os efeitos dessas drogas, isto é, não sabemos que outros se efeitos esses fármacos são capazes de produzir no organismo, além da neurogese”, diz o geneticista Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.

Ele dedica atualmente ao estudo de medidas naturais capazes gerar novos neurônios a partir de células tronco. “Sabemos, por exemplo, que o estímulo elétrico produzido durante um ataque epilético é capaz de produzir um verdadeiro boom, com a produção de novos neurônios no hipocampo, que é região responsável pela memória”, afirma.

O problema é que os neurônios não conseguem se desenvolver como o esperado e eles mais prejudicam do que a ajudam as redes neurais. Outras situações como o exercício físico e a gravidez também são capazes de promover o nascimento de novas células.

“A endorfina e a insulina produzidas durante o exercício físico produzem novos neurônios”, acrescenta. Um estudo feito com camundongos mostrou que os animais mais velhos, com cerca de dois anos, que faziam exercícios na gaiola em rodinhas giratórias tinham habilidade mental equivalente a jovens sedentários. A pesquisa mostrou que a atividade física melhorou a memória e a capacidade de aprendizado.

E tem mais: o simples fato de explorar novos ambientes pode acelerar o nascimento de novos neurônios, mostrou outro estudo feito também com comundongos. Outro fator que influencia a gênese de células nervosas é alimentação.

Os pesquisadores descobriram que o chocolate, considerado vilão da dieta saudável até pouco tempo, é capaz desencadear o nascimento de novas células nervosas, devido aos agentes oxidantes. O mesmo vale para as frutas vermelhas.

“No caso do chocolate, o problema é que se o alimento for consumido em demasia, devido às gorduras saturadas, pode provocar problemas cardíacos”, alerta Alysson. Por isso, o segredo de tudo está no equilíbrio.

Segundo o pesquisador, o próximo passo de sua pesquisa é descobrir quais os mecanismos que fazem com que se produzam diferentes tipos neurônios. Há duas regiões onde as elas se formam, uma delas zona logo abaixo dos ventrículos (um bolsão de líquidos no meio do cérebro), que migram para o bulbo olfatório e ajudam no reconhecimento de aromas.

O segundo é o hipocampo, uma área essencial para a formação de memórias, embora ninguém saiba dizer qual a função dos novos neurônios ali. “Se soubemos como se formam os diferentes tipos de neurônios, seremos capazes de descobrir quais seriam defeituosos e produzir uma droga para evitar que eles fiquem doentes”.

“Ainda estamos engatinhando com células tronco, sobretudo quanto à capacidade de gerar novos neurônios. Também ainda pouco sabemos sobre que tipo de correção poderemos fazer com a recuperação de novos neurônios. Mas sou esperançoso na capacidade do ser humano de conseguir controlar essa tecnologia, mas ainda temos um longo caminho pela frente”, diz o geneticista Carlos Frederico Martins Menck, professor da USP.
Publicado na Psique