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domingo, 27 de março de 2011

Cadê meu celular?



Por Roberta de Medeiros

Há pessoas que não conseguem ficar sem o celular nem por um instante. Essas pessoas entram num estado de profunda ansiedade e angústia quando se veem sem o celular, quando ficam sem créditos ou com a bateria no fim. A necessidade de estar conectado ultrapassa todos os limites.
Essas pessoas não saem de casa sem o celular, mantém o telefone ligado 24 horas por dia e sentem ansiedade quando o esquecem em casa. Antes de dormir, programam o telefone com o número do médico, do psicólogo e dos hospitais registrados em ordem por uma numeração específica, para o caso de ser necessário.

Elas apenas precisariam apertar a tecla correspondente ao atendimento e logo encontrariam a providência desejada. Elas ainda se sentem rejeitadas quando ninguém lhes telefona ou quando percebem que os amigos recebem mais ligações do que eles. Quando ficam sem bateria ou fora da área de cobertura se sentem ansiosas, angustiadas e inseguras.

Para a psicóloga Sylvia van Enck, do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, da USP, a nomofobia é um transtorno do controle dos impulsos com um forte componente de ansiedade generalizada. 

Alguém que apresenta algum transtorno no controle dos impulsos, tem dificuldade para resistir à tentação de executar um ato que possa vir a ser prejudicial para si ou para os outros e obtém alívio e diminuição da tensão emocional e física quando ação é executada.

“O transtorno de ansiedade faz parte da caracterização dos transtornos no controle dos impulsos e, neste caso, a pessoa é acometida por uma apreensão negativa em relação aos eventos futuros, provocando sensações de inquietação psíquica e sintomas físicos desagradáveis”, diz a psicóloga. 

Não é fácil se “desplugar” do celular, uma vez que. na sociedade tecnológica, o aparelho é sinônimo de status e inclusão social. “Podemos entender que o uso do aparelho celular mesmo que não excessivo, especialmente junto à população jovem esteja relacionado aos aspectos de inclusão social e conectividade entre os amigos. Por outro lado, com o avanço dos recursos tecnológicos do celular, adquirir um aparelho cada vez mais sofisticado pode conferir status econômico e social, o que pode estar relacionado à busca de reafirmação da identidade psicológica dos adolescentes nesta fase da vida”, analisa Sylvia.

O mercado oferece uma infinidade de aparelhos, e é difícil resistir à tentação de adquirir o mais novo modelo. Cada vez mais a população mais jovem, incluindo crianças, está cedendo às pressões do mercado com a ajuda dos pais.

Mas psicóloga alerta: “Há um risco no desenvolvimento da insegurança pessoal que pode ser também o reflexo da insegurança dos pais, que precisam estar sempre tendo notícias do paradeiro dos filhos. Outro aspecto a ser considerado é a diminuição na resistência à frustração diante da espera de um contato ou do silêncio do outro, gerando ansiedade, angústia... que se não controlados podem desencadear comportamentos agressivos, reflexos da intolerância gerada pela nomofobia”, diz Sylvia.

-Transtorno de ansiedade
Autora de uma tese de doutorado sobre o tema, a psicóloga Anna Lúcia Spear King, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, comparou pacientes com um transtorno de ansiedade conhecido como síndrome do pânico, com pessoas completamente saudáveis, para saber o que eles sentiam quando ficavam sem o aparelho celular.

Entre os pacientes com pânico, a maioria demonstrou ter também a dependência do celular. Mesmo entre os considerados saudáveis, 34% confessaram sentir ansiedade e 54 % disseram ter medo de passar mal na rua se ficarem longe o aparelho.

Anna Lúcia lembra que nomofóbicos são pessoas que apresentam um perfil ansioso, dependente, inseguro e com uma predisposição característica dos transtornos de ansiedade que podem ser, por exemplo:  transtorno de pânico, fobia social, fobia específica, transtorno de estresse pós-traumático; e costumam ficar dependentes da internet por medo que estabelecerem relacionamentos sociais ou afetivos pessoalmente.

Com o telefone celular em mãos, essas pessoas têm a sensação de estarem acompanhadas e se sentem mais independentes. Quando não existia o telefone celular, estes indivíduos não tinham a mesma liberdade de locomoção e autonomia que têm atualmente de posse do aparelho”, explica.

Muitas pessoas nomofóbicas, porém, não aceitam que são portadores desse tipo de fobia e atribuem a sua angustia a várias causas. Colocam a culpa no trabalho ou na necessidade de se comunicar com família ou com amigos, no caso de alguma emergência.
“É comum os dependentes alegarem que não podem ficar sem celular devido ao medo de precisarem do aparelho no caso de uma emergência, quando estão fora de casa, por exemplo. A pessoa se sente insegura sem o celular, é como se o aparelho conferisse uma falsa sensação de apoio, de controle”, comenta a psicóloga Juliana Bizeto, do PROAD (Programa de Orientação e Atendimento ao Dependente) da Unifesp.
 Segundo Juliana, a dependência gera um impacto severo na qualidade de vida.  “A pessoa não tem outras fontes de prazer, passa a se desinteressar por atividades sociais, afetivas e de lazer que anteriormente ele gostava. Ela tem uma relação exclusiva com o objeto de sua dependência e passa gastar cada vez mais, horas do seu dia, a determinada situação”.
 A psicóloga lembra que, no caso da dependência por celular ou internet, o problema pode ser camuflado já que a sociedade aceita o uso abusivo dessas tecnologias. “A nomofobia pode acometer pessoas bem adaptadas, que trabalham, estudam ou são casadas. Por isso, o problema não chama atenção, são poucos sinais visíveis que denunciam a dependência”, alerta.

“Os alvos mais freqüentes desse tipo de distúrbio são os adolescentes e os adultos com mais de 40 anos. O fator de risco para desenvolvimento da dependência é a ocorrência de um evento traumático, como uma separação, a mudança de emprego ou a morte de um ente familiar”, pontua.

O abuso funciona como a única válvula de escape da pessoa, que passa a ter uma vida empobrecida e um campo de atuação muito restrito.

Juliana lembra que os critérios de diagnóstico se apóiam na presença de três traços: exclusividade, tolerância e abstinência. Exclusividade, porque a tecnologia é única fonte de prazer; tolerância, porque a pessoa passa a gastar tempo cada vez maior com essa tecnologia; e abstinência, porque a pessoa apresenta sintomas desagradáveis quando está sem o aparelho, como irritabilidade, agitação e taquicardia.

“O dependente pode até reconhecer que sua relação com a tecnologia não é saudável. Ele consegue racionalizar e admitir que consegue controlar. Mas racionalizar é mais fácil do ter a plena consciência de que está adoecido, numa condição de sofrimento que exige cuidado”, diz o psicólogo Júlio D’Amato, da Universidade Federal Fluminense e professor da Unilasalle.

Segundo ele, o uso abusivo da conexão móvel pode ser só a ponta do iceberg. Muitas vezes camuflam outros distúrbios. Os mais freqüentes: transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), fobia social, transtorno de ansiedade, depressão e TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).

“As sensações desagradáveis experimentadas pelo nomofóbico quando está sem o seu celular, comuns num ataque de pânico, muitas vezes não estão sozinhas, mas acompanhadas de um processo depressivo encoberto. Esses processos não são puros, há uma articulação entre os transtornos”, explica.

Numa sociedade que oferta um sem número de tecnologias e que exige que estejamos conectados permanentemente, como diferenciar um nomofóbico de um usuário habitual? Para D’Amato, o nomofóbico é aquele que não resiste ficar sem rede a conexão, ele precisa dar vazão ao seu impulso. Trata-se de uma neurose obsessiva. Falar ao telefone é uma forma de prazer que encobre a dor.


“O caráter obsessivo é atendido na atuação desmedida do sujeito que se submete a demandas incontroláveis. Vale lembrar que essas exigências inconscientes quando atendidas, logo se manifestam outra vez, levando o sujeito a reeditar comportamentos frente aos quais não consegue se insurgir ou mudar. É nessa perspectiva que podemos pensar, por exemplo, o vínculo do sujeito com atividades como se conectar, comprar, jogar ou comer”, analisa D’Amato.


O psicólogo lembra que a pessoa tem que ficar atenta sempre que passar a se desinteressar por atividades sociais, afetivas e de lazer que anteriormente ele gostava. Esse processo vai minando lentamente a pessoa, que passa a despender cada vez mais horas do seu dia a determinada situação.

“Um sintoma é o afastamento da pessoa de amigos e parentes com desligamento das coisas que antes sentia prazer, na medida em que a pessoa passa a se fixar em uma só atividade. Pessoas que sempre foram produtivas começam a se comportar diferente, dedicando-se menos ao trabalho, à família e às atividades costumeiras. De forma, que tudo no mundo apresenta-se como um sacrifício para ela”, explica D’Amato.

 -Medo
Quando ouvimos som estrondoso, levamos um susto. Mas essa sensação desaparece logo que percebemos que aquele som é inofensivo ou quando o barulho pára. Existem casos, porém, em que sentimos medo sem que o sinal de alerta esteja presente, esse medo é virtual.

Quando esse medo persiste durante um período maior, ele se transforma em ansiedade. Sempre que sentimos medo, reagimos com comportamentos e alterações fisiológicas que nos preparam para reagir a uma situação de ameaça. A pessoa se coloca em estado de alerta.

O esforço exigido provoca reações: a freqüência cardíaca acelera, ocorre vasoconstrição cutânea, aumentado o fluxo sanguíneo para os músculos (já que a pessoa está preparada para reagir fisicamente em relação ao perigo), a respiração acelera, as vias aéreas dilatam-se, ocorre a sudorese.

As situações de ansiedade são até certo ponto normais, mas quando começam a causar sofrimento no indivíduo, ela pode ser considerada patológica. No caso das fobias, o medo tem uma causa determinada, que pode, muitas vezes, ser considerada inofensiva para as pessoas livres de sintomas, como o medo de ficar sem o celular.

As reações fisiológicas, nesse caso, são intensas. Diversas pesquisas feitas por neurocientistas comprovam que há uma região do cérebro que funciona como “botão disparador” do medo, a amígdala.

-Estudo

Um estudo para avaliar a dependência do celular entrevistou 600 estudantes da Faculdade de Medicina de Indore, na Índia. Muitos deles usavam celulares com bastante freqüência, uma vez que a maioria deles moravam em albergues e queriam estar em contato constante com seus familiares e amigos. O mercado indiano surgiu como o segundo maior mercado depois da China para telefones celulares.

Foram identificadas as variáveis demográficas: idade, sexo, escolaridade e residência. O questionário sobre nomofobia tinha oito componentes: há quanto tempo o estudante possui o celular, ansiedade e estresse experimentado por causa das conexões perdidas, perda do celular e descarga da bateria, quantia gasta por mês em recarga, reação mostrada para o telefone tocando em horários impróprios, a freqüência com que eles mudam de telefone.

Cerca de 73% dos alunos responderam que eles mantinham seus celulares com eles, mesmo quando iam dormir, 18,5% dos estudantes utilizou o celular durante as horas de estudos, 20% dos alunos responderam que perdiam a concentração e ficavam estressados quando não tinham seus celulares por perto ou se o celular ficava sem bateria, 25% dos estudantes disseram que eles faziam a atualização de software móvel pelo menos uma vez por ano, 83% dos alunos responderam que o celular era uma ferramenta necessária para ajudá-los a manter conectados com seus familiares, 31% dos alunos tinham pelo menos uma chamada de longa duração todos os dias por mais de 30 minutos, dos quais 39% composta por mulheres e 24% por homens. Cerca de 56% dos estudantes mantiveram seus telefones móveis ou no bolso da camisa ou calça jeans perto de seu corpo para que eles pudessem ter uma sensação de constante contato com seu telefone celular.

Segundo o pesquisador Sanjay Dixit, do Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da MGM, Indore, os resultados encontrados na pesquisa foram extraídos a partir de um estudo com um pequeno grupo, mas podem refletir o cenário em todo o mundo, indicando que nomofobia tem todas as possibilidades de alcançar a escala de epidemia.

“Na realidade, estes resultados dão uma indicação preocupante de que, a cada dia que passa a juventude está ficando mais e mais dependente de celulares, que podem levar condições psiquiátricas graves e problemas psicológicos. Para evitar o estresse induzido por causa do mau funcionamento de telefones celulares, as pessoas que utilizam o aparelho levam um carregador o tempo todo, cartão de telefone pré-pago para fazer chamadas de emergência. E, no caso seu celular não estar funcionando, armazenam números de telefone importantes em outro lugar como backup no caso perderem seu telefone móvel”, explica.
Para a pesquisadora Josyane Lannes Florenzano de Souza, o transtorno ocorre devido ao fato de que em nossa sociedade o ser humano não vive mais num meio natural e sim num meio técnico, que interpõe entre o homem e a natureza uma rede de máquinas e técnicas apuradas. “Em decorrência da expansão dos recursos técnicos, a estrutura da sociedade tecnológica resulta muito mais complexa do que a da sociedade tradicional”, explica. Em consequência da ruptura entre as funções de produtor e consumidor, desempenhadas no passado pelos mesmos indivíduos, e da multiplicação artificial das necessidades de consumo, a organização social desdobrou os papéis sociais atribuídos a uma mesma pessoa. “Um indivíduo é ao mesmo tempo pai de família, empregado de uma fábrica e membro de um clube, de um partido político, de um sindicato, de uma igreja, etc. Por isso, os conflito entre os papéis são muito maiores do que na sociedade tradicional. Essa complexa estrutura da sociedade acaba também demandando uma grande necessidade de comunicação entre os indivíduos. Porém, quando as pessoas se tornam dependentes dessa comunicação ativa, podem se tornar nomofóbicas”, acrescenta.
Os critérios que orientam a identificação do uso excessivo de celular são:

·         Manter o celular sempre à mão, 24 horas por dia mesmo quando dormindo, para não perder qualquer possibilidade de contato;
·         Abandonar as atividades para atender qualquer chamada do celular (muitas vezes interferindo em situações de trabalho, estudo, reuniões sociais e familiares);
·         Manter invariavelmente a bateria do celular carregada;
·         Quando esquecer o celular em algum lugar, voltar para buscá-lo pois do contrário este fato pode gerar extrema ansiedade (como se faltasse algo essencial).

Publicado na revista Psique

quinta-feira, 24 de março de 2011

Como educar os filhos na era do hiperconsumo



Por Roberta de Medeiros

No livro “A Era do Vazio”, o filósofo francês Gilles Lipovetsky, 62 anos, retrata as mudanças de valores ocorridos na transição do milênio e que levaram à morte do ético, que dá lugar ao estético. Falamos de uma troca do interno pelo externo, do invisível, pelo visível. As pessoas passam a se oferecer ao deleite e desfrute da cultura como se fosse uma mercadoria que se vende pela embalagem em prateleira de supermercado.

Se no passado, nossas paixões eram de alguma maneira freadas pela razão, que decidia pela satisfação ou não dos desejos, hoje essas paixões são guiadas pelas leis do mercado. As necessidades (ou seriam caprichos?) não partem mais das pessoas, já que elas mesmas se vêm na condição de objetos à espera de aceitação num mercado altamente competitivo. As paixões estão, assim, fora do seu controle, elas são dirigidas por modismos.

Assistimos à explosão do consumo, temos um mercado forte e diversificado que se renova a todo instante para atender a um indivíduo hedonista, sempre preocupado em satisfazer o seu desejo imediato. Sequer paramos para pensar, mas tudo em nossas vidas passa pela lógica do “eu tenho”. A relação do homem contemporâneo com o mundo é de posse, em que quero tudo e todos (e inclusive eu mesmo!) sejam de minha propriedade.

Nesse contexto, somos educados para ser consumidores vorazes. Muitas vezes a ausência dos pais é compensada por presentes e brinquedos. Mas será que compensar a ausência de pai e mãe por brinquedos e presentes apazigua as incertezas de crianças? Como, afinal, preparar jovens para que eles possam encontrar um sentido para a vida que não seja somente o de ir à Daslu comprar roupas de grife? Sabemos que o luxo é gastar uma soma considerável somente para ter sensações... Enfim, compramos emoções! Como nos posicionarmos diante de tais tendências?

Quem responde essas questões é o psicólogo Luiz Gonzaga Leite, coordenado do Departamento de Psicologia do Hospital Santa Paula e professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica). Segundo ele, “os próprios pais são responsáveis por boa parte dos problemas, uma vez que costumam incentivar seus bebês a sentar, andar e falar antes do tempo, numa tentativa de compensar suas próprias frustrações”.  Dessa forma, as crianças crescem antes do tempo e, por isso, ficam sujeitas a novas necessidades de consumo.

“Outra atitude a ser repensada é o fato de alguns pais, principalmente aqueles que passaram por dificuldades financeiras na infância, tentarem poupar seus filhos a todo custo de privações, o que certamente resultará em crianças (e, futuramente, adultos) sem limites e incapazes de suportar frustrações”, diz o psicólogo.

Para ele, o maior erro dos pais é não impor limites - embora sejamos obrigados a reconhecer que isso não é tão simples. “Não adianta puxar pelas orelhas. Cada coisa ao seu tempo. Na sociedade pré-globalização até funcionava, mas hoje em dia está cada vez mais difícil (e quem tem filho sabe disso) segurar a ansiedade das crianças e sua vontade de crescer antes do tempo”, comenta.

Para marcar as etapas do desenvolvimento, ele aconselha que os pais retomem os ritos de passagem que, com o passar o tempo, acabam caindo em desuso. “É muito válido comemorar a entrada na adolescência com uma festa de 15 anos ou ainda um bar-mitzvá [entre os judeus, a cerimônia de iniciação dos meninos ao mundo adulto, aos 13 anos]”, diz.

“Como as etapas estão sendo queimadas e os pré-adolescentes estão sendo muito expostos a estímulos exagerados, tanto da mídia como dos grupos de convivência, essas comemorações são como um contraponto, estimulando o equilíbrio entre a maturação fisiológica e o amadurecimento emocional”, completa.

Publicado na revista Fato


















































terça-feira, 22 de março de 2011

Espiritismo e doença mental



Por Roberta de Medeiros

Uma pesquisa investigou a ligação entre o estado de transe dos espíritas o transtorno de personalidade múltipla, distúrbio que se caracteriza pela presença de duas ou mais identidades distintas que repetidamente tomam controle do comportamento, acompanhadas por uma incapacidade de lembrar de informações pessoais importantes.

O problema poderia explicar o que ocorre com o médium? O psiquiatra Mário Rodrigues Louzã, do Departamento de Psiquiatria da USP, investigou a questão.  O seu estudo abrangeu 72 médiuns de São Paulo submetidos a questões sinalizam a presença da personalidade múltipla (DDIS). O estudo foi apresentado no Congresso da Associação de Psiquiatria Norte-Americana em San Diego.

Os voluntários responderam perguntas como: Você já sentiu que existe uma outra pessoa dentro de você? Essa pessoa já tomou o controle do seu corpo? Há momentos em que você se sente irreal, como num sonho? Já ouviu vozes conversando dentro da sua cabeça? A conclusão do estudo: “As experiências dos médiuns não tem nenhuma relação com aquelas que constam do questionário que identifica personalidade múltipla”,  concluiu o psiquiatra.

Os resultados demonstraram uma forte presença do comportamento dissociativo relacionado a experiências religiosas. Num período de 30 dias, foi observada uma média de 4,6 casos de incorporação; 2,9 de escutar espíritos e 2,8 de recebimento de mensagens espirituais. 

No entanto, não foi constatada uma relação patológica da dissociação com religião. A pesquisa ainda demonstrou bom controle social do fenômeno. Apenas 4 das 62 respostas alegaram história de abuso sexual na infância, o que demonstra que comportamentos dissociativos podem estar presentes em uma população bem adaptada. 

Segundo o psiquiatra, não há evidências de que dissociação surja como mecanismo de defesa ou de que seja decorrente de traumas psicológicos. Ao contrário, Louzã lembra que as reações dos médiuns são aprendidas.  

- Experiência sobrenatural é comum
Experiências sobrenaturais são bem mais corriqueiras do que se imagina.
Uma investigação feita na Grã-Bretanha no século 19 entrevistou 15 pessoas que responderam as seguintes perguntas: “Você já teve, quando completamente desperto, uma vivida impressão de ver e ser tocado por um ser vivo ou objeto inanimado, ou de ouvir uma voz, cuja impressão não foi devida a qualquer causa física externa?”.

Um total de 1684 respostas foram positivas, muitas delas eram de mulheres e jovens adultos. O tipo de alucinação mais freqüente foi a visual. Outro estudo mostrou que 10% dos homens a 15% das mulheres apresentam alucinações ao longo da vida.

Há diversas pesquisas do gênero com universitários. Uma delas Uma delas envolveu 375 estudantes, 39% deles relataram apresentar sonorização do pensamento. Numa outra amostra de 586 entrevistados, entre 30% a 40%  já ouviram vozes, sendo que em quase metade dos casos essa experiência era vivida uma vez por mês.

A  maioria das pessoas vê essas alucinações com algo positivo. Os resultados das pesquisas em pessoas livres de transtornos mentais levam alguns autores a questionar se as alucinações devem ser sempre consideradas uma patologia.

É verdade que nem todas as pessoas estão dispostas a falar sobre suas alucinações. Não abertamente. É de se supor algumas delas, tenham receio de partilhar suas vivências por temer a rejeição social. O que não ocorre no contexto religioso em que essas experiências são valorizadas pelo grupo.

É algo para se pensar. O fato é que não há respostas prontas. O que os pesquisadores fazem é rastrear pistas. Uma que pode ajudar é descobrir o que veio primeiro: a prática religiosa ou a doença mental?  A partir daí, é possível arriscar algumas conexões: “A religião está na origem do transtorno psiquiátrico ou pessoas com distúrbios é que buscam a religião como alívio?”, questiona Almeida.

De qualquer modo, existe muita discussão em torno dos sinais que podem separar o “normal” do “anormal”. Isso vai depender do viés, dos padrões ditados por uma dada cultura. Uma forma flexível de encarar as crenças religiosas de cada paciente é o que os pesquisadores parecem defender: “É vital que a abordagem seja equilibrada e evite os extremos, por um lado, tomar como doentios os estados místicos ou, por outro lado, de tomar como espiritualidade os estados psicóticos e glorificar a doença”, reflete Louzã.

-Alento
Todo mundo conhece alguém que buscou religiões espiritualistas (kardecismo, umbanda e candomblé) com intuito específico de curar uma determinada doença. No Brasil, a prática é largamente difundida.

A possessão é vista com bons olhos. Dificilmente é encarada como um traço de instabilidade mental, como ocorre em países de forte cultura industrial, por exemplo. Entre os católicos (80% dos brasileiros), uma grande parcela se declara não-praticante (90% deles) e participa de cultos espíritas. A busca é livre.

Existiria um lado religioso e um lado médico? Há alguma distinção entre doença espiritual e doença material? Os líderes religiosos acreditam que sim. Essa visão, porém, não é compartilhada pela psiquiatria, que descarta a existência de uma fronteira entre doença da alma e a doença da mente. Para a psiquiatria, ou a doença existe ou ela não existe.


segunda-feira, 21 de março de 2011

Fobia de sexo



Por Roberta de Medeiros

Elas simplesmente repudiam qualquer estímulo sexual, até mesmo carícias e beijos, e podem ficar horrorizadas somente de pensar no assunto. São pessoas que, literalmente, têm fobia de sexo. Quando postas diante de uma situação em que a transa é um desfecho provável, a reação é de ansiedade e desconforto.

Em certos casos, a pessoa pode ser tomada por um ataque de pânico. O organismo é completamente abalado: sensação de terror, palpitação, náusea, tremor, suor intenso, tontura, desarranjo intestinal e falta de ar. A resposta física é semelhante àquela presente em outros tipos de fobia.

“Há pessoas que desenvolvem fobia de elevador, outras têm muito medo de barata, mas isso é socialmente aceitável. Já na aversão a sexo há um grande comprometimento da vida social”, disse o psicólogo Oswaldo Rodrigues Júnior,  presidente da Sociedade Brasileira para Estudo da Sexualidade Humana em entrevista a revista Fato. 

Segundo ele, quem sofre de aversão ao sexo geralmente tenta escamotear o problema – ou evita casamentos ou casa-se com pessoas que se encontram nas mesmas condições. “Essa pessoa não sente qualquer prazer ou desejo e foge do contato sexual a qualquer custo”, explica.

Geralmente o problema está ligado a traumas de agressão sexual, experiências dolorosas repetidas e conflitos que deixaram marcas inconscientes quanto ao sexo. Um homem cujo amigo morreu de uma doença coronariana irá evitar o ato sexual temendo que o esforço físico resulte num ataque cardíaco, por exemplo.

O psicólogo salienta que, apesar da experiência dolorosa funcionar como gatilho para o surgimento da atitude de esquiva, é a personalidade que irá determinar se a pessoa terá ou não repugnância a sexo. “Uma mulher pode ser estuprada só irá desenvolver fobia se tiver predisposição para isso”, exemplifica.

-Vaginismo
Ao lado da psicóloga Fátima Broti, ele ainda estuda outro problema que afeta a sexualidade feminina, o vaginismo. De ordem psicológica, a perturbação causa contrações vaginais involuntárias sempre que tentada a penetração. O que pode causar dor, desconforto e até impedir a penetração.

Diferente das mulheres que têm aversão a sexo, aquelas que têm vaginismo podem sentir desejo, prazer e até são capazes de ter orgasmos. Porém, elas têm contrações vaginais por associarem a atividade sexual à sensação de medo ou dor.

Insistir em relações que não geram prazer, entretanto, está longe de ser uma solução adequada. Ao contrário. Quanto mais se tenta a penetração, mais o medo é se acentua. Tal reação leva a um espessamento da musculatura da vagina, coxas e abdômen. E,  conseqüentemente, a uma piora do quadro.

Ainda que os estudos na área não sejam conclusivos, alguns especialistas sugerem a relação vaginismo com experiências de grande dor física (mesmo não-sexual). Mulheres que passam por uma difícil cirurgia, uma doença ou um acidente grave podem tornar-se sensíveis à idéia de penetração, por exemplo.

Da mesma forma que a fobia, no entanto, a perturbação não deve ser relacionada à dor e a agressão sexual numa relação direta de causa e efeito. Prova disso é que nenhuma das pacientes que participaram do estudo relatou sofrer traumas do gênero.

-Justificativa social
Há uma série de justificativas sociais usadas pelas mulheres para mascarar o transtorno. O psicólogo menciona o caso de uma paciente de 28 anos nunca fez sexo. “Ela dizia que não havia encontrado a pessoa certa, mas o fato é que havia algo que a impedia de manter relações”, diz.

Velhas conhecidas, as desculpas para se esquivar do sexo vão além da famigerada dor de cabeça. Outras: dormir cedo, viajar, descuidar-se da aparência pessoal, tomar substâncias, envolver-se com diversas atividades e passar a maior parte do tempo no trabalho. 

Publicado na revista Fato

Psiquiatria e espiritismo



Por Roberta de Medeiros

O médico Sigmund Freud (1856-1939) considerou a religião como remédio ilusório contra o desamparo. A crença na vida após a morte estaria embasada no medo da morte, análogo ao medo da castração. Nesse caso, o ego estaria reagindo à situação de abandono.

Para ele, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos que foram reprimidos. Os espíritos que se comunicam durante os estados de transe e possessão seriam apenas a projeção dessas entidades mentais para o mundo externo. 

Da mesma maneira que o fundador da psicanálise,  a psiquiatria tendia a tomar como patológicos certos comportamentos religiosos. A visão negativa por parte dessa classe seu origem a reações discriminatórias, principalmente em relação ao espiritismo e a religiões afro-brasileiras, cujas experiências foram interpretadas como manifestação (ou causa) de doenças mentais.  

Um acalorado debate entre médicos e espíritas se estendeu entre a segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20. Médicos chegaram a publicar artigos e teses sobre a chamada “loucura espírita” e a necessidade de combatê-la a partir da proibição da divulgação da religião e o combate ao charlatanismo praticado por seus seguidores, freqüentemente acusados de exercício ilegal da medicina ao tratar pacientes com doenças mentais. Em contrapartida, os centros espíritas produziam teses tentando legitimar suas crenças e fundaram seus próprios hospitais psiquiátricos.

Entre os médicos, surgiram duas correntes proeminentes: uma delas pretendia avaliar como os fenômenos mediúnicos poderiam oferecer elementos para melhor compreensão do funcionamento da mente e outra que se ocupou de combater a religião e considerou as manifestações mediúnicas como doença mental– essa foi a que mais influenciou os psiquiatras brasileiros.  

Eles se basearam na teoria do médico e psicólogo Pierre Janet (1859-1947) sobre automatismo psicológico. Em sua obra “L´Automatisme Psychologic”, ele define a mente a partir do funcionamento integrado de diversos módulos mentais independentes (memória, percepção, afeto, sensação). Quando um desses módulos começa a funcionar de modo independente, teríamos o que o pesquisador chama desagregação psicológica ou dissociação.

Esse funcionamento independente da consciência Janet chamou
de automatismo mental.  Ele propunha a existência de uma “segunda consciência”. Quando a personalidade se desagrega, uma parcela dela pode se desgarrar do conjunto e dar origem a diversos automatismos motores e sensoriais.

Daí os fenômenos como a escrita automática, personalidades múltiplas anestesias, catalepsias, sonambulismo, e alucinações. Ele não acreditava que as experiências mediúnicas pudessem, de fato, serem originadas pelo contato com espíritos.

“Em muitos casos há o simples desdobramento da personalidade – a identidade segunda – dizem-se espírito – exprimindo pensamentos latentes do médium: é o treino da mitomania”, escreveu Janet.

Outro a se dedicar ao tema foi William James (1842-1910), um dos psicólogos mais importantes de todos os tempos. Seus estudos sobre a religião resultaram em seu famoso livro “As variedades da experiência religiosa” e a então chamada psychical research (pesquisa psíquica).

Defensor do “empirismo radical”, acreditava mesmo os fenômenos mais absurdos eram passíveis de análise. A investigação da mediunidade recebeu especial destaque. E por mais de duas décadas, realizou pesquisas com uma das mais renomadas médiuns do século 19, Leonore Pipe.

O pesquisador considerava a possessão mediúnica uma forma natural de personalidade alternativa, sem necessariamente ter um caráter patológico. Entre as possíveis explicações para os fenômenos mediúnicos estariam a fraude, a dissociação com uma tendência a personificar uma outra personalidade e a influência de um espírito. Ele considerava que a telepatia e a real comunicação de um espírito poderiam explicar essas experiências religiosas.

Apoiado em estudos sobre telepatia, hipnotismo e alucinações, o pesquisador inglês Frederic W. H. Myers considerou os fenômenos mediúnicos como manifestação do subconsciente. Desenvolveu a teoria do “self subliminal”.

Existiria “uma consciência mais abrangente, mais profunda, cujo potencial permanece em sua maior parte latente”. Utilizou a palavra subliminal para designar “tudo que ocorre sob o limiar ordinário, fora da consciência habitual”.

Haveria apenas um Self, com uma pequena porção consciente (supraliminal) e grande parte inconsciente (subliminal). Os conteúdos subliminais que atingem a consciência freqüentemente são diferentes de qualquer elemento de nossa vida supraliminal, inclusive faculdades das quais não há conhecimento prévio.

Essas habilidades, como as inspirações dos gênios, telepatia, clarividência e mesmo a comunicação com os mortos, envolveriam uma grande ampliação das faculdades mentais. Sua principal obra, “Human Personality and Its Survival of Bodily Death”, foi deixada incompleta e só foi publicada depois da sua morte.

Outro estudioso que se dedicou aos temas ocultos foi psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), autor de “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenômenos Chamados Ocultos”. Como Janet, explicou a comunicação com os espíritos a partir do subconsciente.

“A grande maioria das comunicações tem origem puramente psicológica e só aparecem personificadas porque as pessoas não têm noção nenhuma da psicologia do inconsciente”, escreveu. Outros escritos, porém, revelam que ele tinha dúvidas quanto à origem dessas manifestações: “Para mim, eles são inexplicáveis e sou incapaz de decidir a favor de qualquer uma das interpretações usuais”.

Na experiência mediúnica, haveria uma desagregação de “complexos psíquicos”, o que dependeria de certa predisposição. Com a prática da capacidade dissociativa, haveria cada vez mais elaboração das manifestações mediúnicas. Assim, os espíritos se multiplicam.

Outro elemento que também explicaria o transe é o chamado “aumento do rendimento inconsciente”, ou seja, “aquele processo automático cujo resultado não está ao alcance da atividade psíquica consciente do respectivo indivíduo”. Como a manifestação do inconsciente, o médium pode exibir uma inteligência superior, como ter acesso a informações não disponíveis na vigília.

Jung pondera a possibilidade de que a personalidade comunicante seria a personificação de um arquétipo ou realmente um espírito:“No caso de Betty (personalidade que se comunica), tenho dúvidas em negar sua realidade como espírito; isto significa que estou inclinado a aceitar que ela seja mais provavelmente um espírito do que um arquétipo, ainda que represente supostamente as duas coisas ao mesmo tempo. Parece-me que os espíritos têm uma tendência cada vez maior de se aglutinar aos arquétipos”.

Com os estudos de neurologia surgidos na década de 1870, os pesquisadores Willian Hammond e George Miller Beard se destacaram na tentativa de demonstrar que o fenômeno do transe tinha causas orgânicas.

Acrescentando novos elementos ao discurso hegemônico, defenderam a tese de uma vida involuntária, semelhante ao conceito de subconsciente, poderia aflorar com uma disfunção cerebral.

Outro teórico da época foi o médico criminologista Cesare Lombroso (1936-1909), autor de “Hipnose de Mediunidade” (1909). Ao sondar o tema com a médium italiana Eusápia Paladino, concluiu que os médiuns tinham comportamentos histéricos.

A vertente que tomou como patológica as vivências mediúnicas considerava as pessoas frágeis e instáveis emocionalmente um alvo fácil da doutrina espírita. Os estudos se concentraram nas mulheres, por serem mais suscetíveis à histeria e serem mais propensas a desenvolver doenças mentais.  

O embate entre psiquiatras e espíritas perdeu força após os anos 50. Nos anos seguintes, surgiu a abordagem transcultural, que adotava uma visão mais antropológica acerca do tratamento dos distúrbios mentais.

Essa abordagem rompeu com o etnocentrismo, afirmando-se sensível as diferentes realidades nas quais ocorre o adoecimento psíquico e incorporando concepções populares sobre a doença no processo terapêutico. Nesse caso, a religião começou a ser vista mais como um colaborador no tratamento do que algo a ser combatido.

Publicado na revista Psique

quarta-feira, 16 de março de 2011

Borderline e a hipermodernidade



Por Roberta de Medeiros

Freud deixou claro que todos nós temos traços neuróticos, ainda que não produzam um incômodo considerável. Esse era um padrão de normalidade que prevaleceu na sociedade vitoriana, na qual o homem respondia com recalque ao julgo da repressão autoritária.

Hoje, quando palavra de ordem é fruição, é a personalidade borderline que se impõe como a normalidade contemporânea, defende analisa o médico e psicanalista Nahman Armony, doutor em Comunicação e professor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro

“Enquanto o neurótico trilhava o caminho do dever e da disciplina, o borderline, livre das amarras da repressão, transgride os limites das convenções sociais dando rédeas soltas à criatividade, pagando, porém, o preço da instabilidade”, compara Armony.

O borderline é um diagnóstico da psiquiatria, cujo quadro se caracteriza pela impulsividade, tendência ao ato, baixa resistência à frustração, instabilidade emocional que oscila do o amor ao ódio, perturbação da auto-imagem e a propensão a se envolver em relacionamentos intensos e instáveis.

Tal como a criança ansiosa por satisfazer seus desejos infantis, o borderline lança mão de todos os artifícios, inclusive aqueles que são contra lei. Ele tem sentimentos crônicos de vazio e demonstra uma busca constante por identificações.

Ao se deparar como pacientes com esse perfil em seu consultório, o psicanalista desenvolveu um estudo em que apresenta uma espécie de borderline não patológico que seria correspondente ao perfil do homem hipermoderno delineado pela sociologia.

A idéia foi defendida em sua tese de doutorado em Comunicação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que deu origem ao livro “Borderline: uma outra normalidade”. Armony reconhece a existência de graus de gravidade da síndrome.

Segundo ele, há realmente um borderline severamente perturbado (borderline pesado) que beira a psicose, mas também existe um outro borderline que se aproxima da normalidade (borderline brando).

“Fui percebendo que as características dos meus pacientes borderlines eram semelhantes aos traços de algumas pessoas do meu convívio, só que em intensidades diferentes. Notei que um grande número de pessoas age de forma borderline. Elas usam os mesmos processos psíquicos, de um modo mais adequado à inserção social”, conta.

Se o borderline pesado tem dificuldades afetivas e nas relações interpessoais devido ao seu narcisismo exacerbado, o borderline brando parece se ajustar a uma sociedade em constante transformação.

De natureza inconstante e sujeito a identificações transitórias, ele navega ao sabor do fluxo vertiginoso proporcionado pela sociedade do chip e do “mass media”. Fluido, ele adota uma ética flexível que o torna adaptável a um mundo de permanentes modificações tecnológicas, econômicas e culturais. 

Ao borderline, interessa um ego sem fronteiras, não a consciência vigilante do homem moderno. Sempre voltado para ação, ele se impõe tal qual a criança radiosa guiada por caprichos à espera de serem satisfeitos numa sociedade hedonista, cujo princípio é o prazer.

Sua intensidade o leva a buscar experiências inéditas, disponíveis graças aos meios tecnológicos que saturam a realidade e hiper-realizam um mundo, onde o importante é o gesto, o processo inventivo. O borderline se deixa seduzir por uma vida que, caoticamente, fragmenta-se em signos, imagens e dígitos. Tudo se revela leve e sem substância, como o sujeito hipermoderno.

Segundo Armony, o borderline brando nem segue os cânones do social como o neurótico, nem se dispersa improdutivamente como o psicótico. Seu mundo de fantasia, fortemente impregnado de afeto, pressiona no sentido da realização. Ele não desiste de realizar os seus desejos infantis no social.

A realidade impregnada pela fantasia e a fantasia, realizando-se no social, faz do borderline uma realidade cultural renovadora. O borderline é capaz de colocar de forma palatável para a sociedade suas fantasias. 

Isso só é possível graças à identificação contínua e transitória do borderline com as pessoas e com o mundo, deixando-se permear pelo ambiente à sua volta – um processo que se autor chama de identificação “dual-porosa”.

O autor lembra que “o borderline pesado tenta tapar o seu vazio através de relações simbióticas; suas carências, embora eventualmente preenchidas, permanecem atuantes, podendo criar cegas exigências excessivas nos relacionamentos afetivos, sociais e profissionais, o que certamente causará transtornos. Já o borderline brando sobreleva seu vazio através de uma identificação dual-porosa com os seres humanos e com o mundo”.

O borderline não é mais mortificado pelo recalque como o neurótico da sociedade moderna. Não carrega dilemas de natureza ética, ele se deixa guiar pelas impressões estéticas. Múltiplo, inconstante, dono de uma identidade flexível, ele embarca num processo lúdico, transformando sua própria existência em uma obra de arte.

“Creio que não será nenhum abuso dizer que o artista talentoso recria magicamente o mundo através de sua arte, mesmo porque essa idéia permeia nossa subjetividade. Borderline e artista talentoso, quando não coincidem, encontram-se. Ambos recriam magicamente a realidade. O artista através da obra de arte e o borderline através da transformação da vida em obra de arte", afirma Armony.

Segundo o psicanalista, o borderline brando é capaz de realizar suas fantasias no social como o homem hipermoderno seria artista da vida, uma pessoa que vive criativa e apaixonadamente a própria existência.

Ele lembra que todos somos artistas na medida em que criamos nosso estilo de vida. O artista é aceito pelo social. O seu atrevimento já é esperado pela sociedade.

“Antigamente o artista poderia ser vaiado, como aconteciam com as óperas. Van Gogh, por exemplo, morreu sem que suas obras fossem reconhecidas. Mas atualmente uma pintura estranha ou uma música dissonante são tomadas como válidas.

A modernidade sólida não aceitava que existissem estilos de vida diferentes dos convencionados. A modernidade líquida, isto é, a hipermodernidade, já aceita que cada um produza esteticamente seu estilo de vida”, explica.

Segundo Armony, como o borderline não passa pela repressão, ele quer que sua realidade interna se realize imediatamente no social. Ele o faz independente de ser mais difícil ou mais fácil.

Ele o faz magicamente porque ele não percebe as dificuldades reais existentes. Muitas vezes isso dá certo. Se ele tem uma idéia original, estranha à sociedade, ele não desiste de realizá-la. Ele é insistente. Ele então pode criar uma nova realidade para a sociedade ou responder a um desejo dessa sociedade, que virá a aceitar sua fantasia.

Segundo Armony, o encontro de dois borderlines brandos pode ser um acontecimento, no mínimo, curioso. Isso porque o psiquismo de um permeia o psiquismo do outro. Essas pessoas realizam trocas de afetos e fantasias sem perder a sua individualidade. Elas estão em identificação mútua contínua.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na sua IV versão, o transtorno de personalidade borderline é indicado quando presente cinco ou mais dos seguintes critérios:
(1)   esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginado
(2)   um padrão de relacionamentos instáveis e intensos, alterando entre a idealização e a desvalorização
(3)   perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem
(4)   impulsividade em pelo menos duas das áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (por exemplo sexo, gastos financeiros, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivamente)
(5)   recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante
(6)   instabilidade afetiva devido a acentuada reatividade do humor e sentimentos crônicos de vazio
(7)   raiva intensa ou dificuldade em controlar a raiva (por exemplo, demonstrações freqüentes de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes)
(8)   ideação paranóide transitória relacionada ao estresse.

Publicado na revista Psique

sábado, 12 de março de 2011

Falando sobre a morte


Por Roberta de Medeiros


A psicologia durante algum tempo negligenciou a questão da morte, provavelmente porque o tema era pouco e empírico e não condizente com o behaviorismo. O assunto, no entanto, começou a se impor de forma que os psicólogos não pudessem mais permanecer indiferentes diante do tema.

Há quem defenda que o medo da morte está na origem de muitos sintomas e doenças psíquicas, insônias, depressão, doenças psicossomáticas e obsessões. Para muitos autores, a maior parte do comportamento humano pode ser considerado como resposta ao medo de não existir. Muitos consideram que se trata de uma ansiedade básica e que qualquer medo simboliza, no fundo, o medo da destruição.

Hoje a morte se transformou num show explorado pela mídia. Paradoxalmente, no âmbito individual ela permanece como um tabu.

"Acaba se vendo muita morte na TV, mas de pessoas desconhecidas e de grandes desastres, uma morte espetacular. O que continua difícil é a falar da morte pessoal, daquela que nos atinge, de nossos entes queridos, ou de nossa própria morte", afirma a psicóloga Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).

Não poderia ser diferente em um mundo regido pela aparência, pelo individualismo e especialmente sustentado pelo culto ao belo, ao novo e ao saudável.

Mas nem sempre foi assim. O homem medieval, por exemplo, encarava a morte com naturalidade, já que o mundo dos vivos estava conectado ao mundo dos mortos através dos mosteiros. A sociedade começou a escamotear a morte a partir do século 19, quando a “morte de Deus” e a ciência se separou do sobrenatural.

Foi quando ocidente o cristão passou a rejeitar e ignorar a morte, dando espaço para o luto angustiante. A crise é resultado do  processo de industrialização, no qual o homem passa a ser visto meramente como gerador de lucros, levando à morte a conotação de ser o cessar da vida produtiva do sujeito.

À medida que a interdição em torno do sexo foi relaxando, a morte foi se tornando um tema proibido. “Isso possivelmente tem a ver com a mentalidade da morte como tema interdito, por acreditar que falar de morte é mórbido e que pode causar mais sofrimento”, pontua Maria Júlia.

Para  o médico e psicanalista Roosevelt Cassorla, professor da Unicamp (Universidade de Campinas), um dos maiores especialistas em tanatologia do país e autor de “Da Morte: Estudos Brasileiros” e  “Do Suicídio: Estudos Brasileiros”, isso é resultado dos valores pós-modernos.

“A morte possivelmente foi se tornando um tema proibido por fatores relacionados a mudanças sociais e culturais. Como por exemplo, o declínio da importância das religiões, a busca do prazer com menos culpa, até a busca do prazer em si mesmo com a dificuldade de aceitar as limitações e frustrações da vida, a substituição da reflexão pelo imediatismo, a superficialidade das relações humanas”, analisa.  

“Tudo isso tem sido relacionado ao que se chama de pós-modernismo. Outro fator que contribui para a negação da morte é a esperança nas ciências, principalmente a medicina, num prolongamento da vida, talvez para sempre. Essa negação, evidentemente, indica defesas maníacas como forma de fugir da realidade.

Defesas maníacas é o nome que se dá a um conjunto de mecanismos que o indivíduo utiliza para fugir do contato com realidade frustrante ou assustadora. Entre os mecanismos utilizados está a negação ["isto não existe"], o desprezo pela realidade ["isso não tem importância"] e o triunfo sobre ela ["eu derroto a realidade"]”, acrescenta.  

 Desde que o homem passou a ter recursos para controle de doenças, ele passou a viver na ilusão de que poderia ter controle sobre a vida e a morte. Trata-se de um pensamento mágico do homem pós-moderno. Para Cassorla, esse pensamento se configura como uma negação psicológica e não racional.

“A morte está aí, o que se nega é sua importância, que ela faz parte da vida e que nos espreita o tempo todo. É uma negação psicológica, não racional. A própria violência do dia-a-dia se torna banal, assim como a vida e a morte. Em outras palavras, se a própria vida perde o valor, a morte passa a ser desconsiderada”, pondera.  

A psicanálise postula que a luta entre a vida e a morte estaria por traz da maior parte do comportamento humano, conforme lembra Cassorla. A psicanalista inglesa Melanie Klein (1882-1960) diz que a existência de um instinto de morte supõe também uma reação a esse instinto sob a forma de medo de aniquilamento da vida.

Assim, o perigo resultante do instinto de morte é a primeira causa de ansiedade. Como a luta entre os instintos de vida e de morte persiste ao longo da vida, essa fonte de ansiedade nunca é eliminada.

"Em teorias psicanalíticas diz-se que a pulsão de vida une, liga, aumenta a complexidade, tanto biologicamente como psicologicamente e a pulsão de morte desune, rompe, bloqueia, em busca do inorgânico. Para algumas escolas psicanalíticas a ansiedade básica é de aniquilamento, de não ser, de não existir, e as demais formas de ansiedade derivariam dela”, observa Cassorla.

- Fantasia de vida eterna

Assistimos à contínua racionalização da vida urbana na tentativa de impedir o inesperado, ou seja, vivemos numa fantasia coletiva da vida eterna. O caráter imaterial da morte ganha novo status na cultura ocidental – o padrão dominante do mercado altera-na simbolicamente.

O sepultamento é afastado da esfera familiar e passa a ganhar uma esfera profissionalizada e empresarial. O ambiente natural da morte, junto à família, é substituído por ambientes tecnificados das UTIs compondo o processo de desnaturalização da morte.

Ela ocorre num ambiente dominado pela lógica organicista e racionalista dos médicos, sustentados por um aparato tecnológico que visa lutar contra todos os males físicos, e que muitas vezes transformam o ser humano em meros objetos.

Nesses ambientes, o psicólogo passa a ter um papel importante no sentido de humanização da morte. O acolhimento do paciente depende da forma como esse profissional elabora a morte.

Mas qual o sentido apreendido pelo psicólogo acerca da morte no ambiente hospitalar? O tema foi analisado pela psicóloga Marta Klumb Oliveira Rabelo, consultora técnica do Programa Saúde na Escola do MEC, em sua tese de mestrado defendida pela Universidade Católica de Brasília.

O estudo mostra que morrer em hospitais passa a ser, muitas vezes, um fato mecânico, apesar do sofrimento que acompanha a dor e a morte. “Abre-se um campo de trabalho para a psicologia nos hospitais. No entanto, por ser esse espaço regido pelo paradigma biomédico, a presença dos psicólogos é ainda bastante reduzida e se tem pouco conhecimento sobre o modo que lidam com a morte cotidianamente”, pondera.


10 maneiras de ajudar a criança no enfrentamento da perda e do luto:

1- encorajar a criança a expressar seus sentimentos;
2-responder as perguntas de forma verdadeira e expressar suas emoções honestamente
3-discutir a morte de forma que a criança possa entender;
4-falar com a criança de acordo com seu nível de desenvolvimento
5-ser paciente, permitir que a criança repita a mesma pergunta, expondo sua confusão e medo
6-não criar expectativas
7-sugerir caminhos para que a criança possa lembrar da pessoa
8-aceitar os sentimentos, percepções e reações da criança, bem como a diferenças de opiniões, duvidas e questões
9-indicar serviços especializados, se for necessário
10-preparar a criança para continuar sua vida. Assegurar que ela se sentira melhor depois de um tempo (lembrando que esse tempo e diferente para cada um).