Por Roberta de Medeiros
As primeiras alterações de comportamento que surgem antes de uma crise psicótica, são essenciais para uma intervenção precoce. É o que mostra a dissertação de mestrado defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) pela psicóloga Nerícia Regina de Carvalho, que investigou como os leigos reagem às primeiras crises psicóticas de seus parentes. Ela observou que a intervenção da família no tratamento de um paciente é essencial na sua recuperação. E, quanto mais cedo os problemas forem identificados, mais eficaz o tratamento. Segundo a pesquisadora, a identificação dos sinais da doença pode interromper sua progressão ou facilitar o tratamento diminuindo as chances dela se tornar crônica.
A psicose é um distúrbio psiquiátrico grave no qual o paciente perde contato com a realidade, emite juízos falsos (delírios), podendo também ter percepções irreais quanto à audição, visão, tato (alucinações), distúrbios de conduta levando à impossibilidade de convívio social, além de outras formas bizarras de comportamento. Para Freud, as psicoses resultam de conflitos entre Ego e realidade (mundo externo), refletem o fracasso no funcionamento do Ego em permanecer leal à sua dependência do mundo externo e tentar silenciar o Id frente a uma frustração da não realização de um daqueles desejos de infância. Ainda segundo Freud, numa psicose existe a predominância do Id e a perda presente da realidade. Para Lacan, a psicose se estrutura a partir da presença de uma mãe onipotente, não havendo lugar para o pai. O psicanalista usa o termo foraclusão para explicar essa condição. Os psicóticos sofrem as conseqüências de tomar as palavras em sua literalidade. As palavras de tornam o objeto. A metáfora é impossível.
A psicóloga lembra que, muitas vezes, o quadro apresentado pelo paciente denuncia relações familiares problemáticas. Diversos estudos têm mostrado que pacientes psicóticos geralmente estão inseridos em uma dinâmica familiar particular que propicia o surgimento da doença. Essas famílias teriam, por exemplo, a presença de uma mãe culpabilizadora e um pai passivo. Outra característica seria a dificuldade de verbalizar sentimentos na tentativa de negar os problemas. As dificuldades são percebidas com externos. Nesse caso, os outros seriam os culpados. Há ainda a precária expressão de afeição. As regras seriam muito duras e inflexíveis. O ponto de vista assumido pela família, muito rígido.
Nerícia investigou a relação de cinco pacientes e seis familiares para entender como eles reagiram durante o período entre a primeira manifestação e a busca por um especialista. Ela concluiu que as famílias tentaram de tudo antes de procurar ajuda especializada. Para os entrevistados, procurar o serviço médico foi a última opção. As estratégias para tentar solucionar o problema foram as mais diversas. Além de conversar com os pacientes, os familiares os vigiavam, para evitar que se machucassem ou incomodassem outras pessoas, rezavam e, em um caso especifico, davam litros de suco de maracujá para que o psicótico se acalmasse.
Entre os fatores de risco a história familiar de transtorno psicótico, personalidade vulnerável, fraco ajustamento, histórico de traumatismo crânio-encefálico, histórico de complicações obstétricas, traumatismo perinatais, estresse psicossocial, abuso de drogas e alterações funcionais. Não é por acaso que os pacientes costumam entrar em crise quando estão na faixa de 15 a 30 anos. Essa é a época em que se faz a passagem da adolescência para a vida adulta, quando ocorrem mudanças cruciais em nossas vidas, como a saída de casa e o casamento.
Nerícia alerta para o fato de que nem toda crise psicótica irá evoluir para uma esquizofrenia. Porém, boa parcela das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia tinha crise com pródomos. Geralmente há a presença de uma alteração no comportamento. Alguns sinais são suspeição, depressão, ansiedade, tensão, irritabilidade, alteração do humor, distúrbios do sono, alterações do apetite, perda de energia ou motivação, dificuldade de memória e concentração, percepção de que as coisas ao redor estão alteradas, crença de que os pensamentos estão acelerados ou lentos, deterioração do trabalho ou no estudo, interrupção do interesse em socializar, surgimento de crenças incomuns. Há ainda a presença de sintomas psicóticos positivos, como distúrbios do pensamento, delírios e alucinações.
Até os anos 1990, os profissionais de saúde mental costumavam trabalhar amparados pela crença de que era eticamente correto retardar o tratamento da psicose até a definição do diagnóstico ser estabelecida. Hoje, contudo, há mais evidência sugerindo a intervenção precoce. Esta ocorre num cenário de mudança de paradigma em saúde mental, que deixou considerar a internação a primeira medida para o tratamento da doença.
Quais são os pródomos que antecedem o surgimento da psicose?
Nerícia- Os pródromos constituem um período de transtorno não psicótico no comportamento ou na vivência do paciente, precedendo o surgimento da psicose. Eles podem ser reconhecidos e interromper a progressão da psicose ou facilitar o tratamento após seu surgimento. O termo "pródromo” vem do grego e significa aquilo que antecede um evento, é usado em dois momentos da esquizofrenia: a fase que precede o período inicial da psicose e a fase da doença que precede uma recaída. Alguns sinais são suspeição, depressão, ansiedade, tensão, irritabilidade, ira alteração do humor, distúrbios do sono, alterações do apetite, perda de energia ou motivação, dificuldade de memória e concentração, percepção de que as coisas ao redor estão alteradas, crença de que os pensamentos estão acelerados ou lentos, deterioração do trabalho ou no estudo, interrupção do interesse em socializar e surgimento de crenças incomuns. Há também os sintomas psicóticos positivos, como distúrbios do pensamento, delírios e alucinações. Percebemos nas pesquisas que o sujeito não era mais o mesmo. A maneira de responder corriqueiramente mudou. É verdade que esses sinais não aparecem somente na psicose. Na adolescência, por exemplo, existe um quadro muito instável. O mesmo vale para pessoas que experimentam uma situação de estresse no trabalho, por exemplo. Elas invariavelmente irão apresentar os mesmos sinais.
Até a década de 1990, a comunidade de serviços de saúde mental costumava trabalhar amparada pela crença de que era eticamente correto retardar o tratamento da psicose até a definição do diagnóstico. Hoje, contudo, há mais evidência sugerindo a intervenção precoce....
Nerícia- Quanto mais cedo a intervenção melhor para o paciente não perca a funcionalidade. Nos três primeiros anos depois do surgimento da primeira crise, caso não haja qualquer intervenção, a chance do quadro se cronificar é de 50%. A intervenção ajuda a família a reconhecer o contexto em que os sinais da doença ocorrem. É a partir da intervenção que é possível verificar se outro membro da família também precisa de atenção. Com isso, é possível oferecer apoio social, acionar vizinhos e outros membros da família do paciente e criar vínculos com o CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) para que as crises tenham sua progressão detida. A intervenção precoce ocorre num cenário de mudança de paradigma em saúde mental, que deixou considerar a internação a primeira medida para o tratamento da doença. O filme Bicho de Sete Cabeças evidencia bem o processo manicomial, o afastamento forçado da família. Hoje sabemos que o melhor para o paciente é a recuperação em casa para que ele não perca o referencial da família. A gente tem visto as famílias relutarem bastante em procurar a internação. Procuram-na em casos extremos, quando paciente tenta o suicídio ou agride uma pessoa, ou seja, em casos quando ele representa uma ameaça para si mesmo ou para outras pessoas.
Essa mudança tem desdobramentos. Por exemplo, a necessidade de definir o que é psicótico. Existiria uma fronteira entre pré-psicótico e francamente psicótico. A linha divisória entre as duas classificações é tênue. Com estabelecer a diferença?
Nerícia - O meu estudo se debruça sobre os sinais que antecedem o comportamento psicótico. Nem todas as situações em que são identificados pródromos evoluem para uma crise psicótica. Contudo, a maior parte dos casos de pródromos em psicose acaba por evoluir par uma esquizofrenia. Os estudos dizem que 50% das pessoas que foram diagnosticadas com esquizofrenia tinham crise com pródomos, como insônia, irritação, perda de peso... São esses sinais que configuram o que muitos autores chamam de pré-psicótico. É verdade que o quadro depende do contexto. Algumas pessoas que estejam passando por uma separação, por exemplo, podem apresentar esses mesmo sinais. Por isso, é importante ponderar as circunstâncias em que esses sinais se apresentam. Já o psicótico, é popularmente aquele que vê ou ouve coisas. Essa pessoa pode ter doença mental, excluindo o caso de abuso de substâncias. Nesse caso, é importante fazer uma retrospectiva para fazer o diagnóstico e não rotular o paciente. A gente pretende se desvincular em diagnosticar. Há casos em que o sofrimento vai continuar e virar esquizofrenia, mas há também casos em que o paciente tem a crise e depois não apresenta mais problemas.
Estudos têm demonstrado que um tipo de dinâmica familiar está presente em considerável parte dos casos de esquizofrenia, como um nível de crítica e superproteção bastante elevados....
Nerícia - Percebemos que a comunicação entre as pessoas era muito truncada. Os papéis entre os familiares estão muito cristalizados, de forma que não se conseguia modificá-los. Nesse caso, a autonomia dos membros da família está comprometida. Não existe um espaço para expor a crítica sem causar danos maiores. Percebemos muito isso no “setting” terapêutico. O paciente acaba denunciando nesse momento o que não pode ser falado em família. É quando vem à tona algum segredo envolvendo um membro da família. Pode ser um familiar que se suicidou, um episódio do qual ninguém fala nada. Nessas famílias, nem sempre existe espaço para diálogo, não existe espaço para fazer algo errado ou fazer algo diferente. Isso faz com que as pessoas tenham um nível de estresse muito grande. Recebemos um caso de uma mãe que entrou numa crise psicótica. A filha mais velha passou a ocupar o lugar da mãe nas funções da casa. Durante o atendimento, tanto a filha quanto o pai sempre colocavam a mãe numa situação de falta de autonomia. O nosso papel era fazer com que essa mãe resgatasse o seu lugar.
Por que a sua pesquisa se concentrou nos sinais da esquizofrenia?
Nerícia - A esquizofrenia apresenta sinais clássicos do comportamento psicótico. É verdade que outros transtornos podem apresentar esses sinais. No momento da crise, é difícil fechar um diagnóstico, não se sabe se ela pode ou não se perpetuar. Os sintomas também podem aparecer e não se manifestar mais. Mas os estudos mostram que quando uma pessoa tem uma crise psicótica, ela tende a encaminhar para esquizofrenia.
Quais fatores de risco para psicose?
Nerícia - A idade entre 15 e 30 anos, sexo masculino, já ter personalidade pré-mórbida, alteração do comportamento, história familiar de transtorno psicótico, personalidade vulnerável e fraco ajustamento.
Psique- Na hora de fazer o diagnóstico, há larga utilização dos sintomas positivos. Parece que eles desempenham papel primordial na detecção da patologia?
Nerícia - Os chamados sintomas positivos, como alucinação e delírio contam. Mas outro aspecto importante é a diminuição da funcionalidade do paciente. Quando ele não consegue desempenhar os papéis que normalmente desempenhava.
A intervenção precoce visa reduzir a incapacidade, em longo prazo, e os custos humanos e econômicos associados à doença. Quais as vantagens da intervenção precoce?
Nerícia - As estratégias de prevenção precoce pretendem limitar a duração da psicose antes do tratamento e prevenir recaídas. As maiores vantagens da intervenção precoce incluem a menor morbidade, recuperação mais rápida, melhor prognóstico, preservação das capacidades psicossociais, preservação do apoio familiar, menor necessidade de internação.
Quais os pontos-chave a serem considerados na triagem de pacientes apresentando possível quadro de psicose?
Nerícia - Essa foi uma questão bastante debatida durante meu estudo. A funcionalidade é uma questão importante, a forma que a pessoa é afetada em sua vida familiar e profissional. Atendemos, por exemplo, uma mulher que via e ouvia outras pessoas, mas para ela isso não era um problema. As maiores dificuldades era o relacionamento com a mãe, a continuidade atividades escolares, a presença de depressão e o uso de substâncias. O essencial, nesse caso, é investigar bastante para poder agir. Se a pessoa não sente que o fato de ouvir vozes é um problema, como proceder? Algumas pessoas simplesmente não queriam mais atendimento depois de atingir uma melhora do quadro com medicamento. Elas não queriam fazer terapia.
Quais as maiores dificuldades no reconhecimento da psicose?
Nerícia - O mais difícil é saber como o paciente lida com suas crenças, em especial, a religiosa. Outra dificuldade é o fato de a família não aceitar e não admitir que está em crise. Muitas famílias, por exemplo, definem a doença como depressão, quando na verdade é uma psicose. É uma tentativa de suavizar o problema, ela não quer dizer que o familiar é psicótico.
Quais os sentimentos relatados pela família após o diagnóstico de doença mental. Como trabalhar esses sentimentos?
Nerícia - Os sentimentos incluem negação, tristeza, culpa, medo da estigmatização, confusão, fracasso vergonha e raiva. A vergonha pode levar as famílias a resistir à internação ou ao início do tratamento, negando que o paciente esteja doente. Podem ainda perder o contato com outros familiares e amigos. A família pode se sentir culpada por não ter procurado um médico antes. Os familiares não se vêm como agentes modificadores e não sabem como podem auxiliar o processo terapêutico. Eles simplesmente não acreditam que o familiar possa retomar a vida que tinha antes. Precisamos estar atentos para que esse sentimento de culpa não se cristalize. Financeiramente o paciente em crise é muito oneroso, a família tem que procurar diversos profissionais, mudar medicamentos e tomar uma série de medidas para que a pessoa possa retomar o convívio social. Muitas pessoas são demitidas por causa da crise. Existe, portanto, uma preocupação muito grande da família sobre como essa pessoa será vista pela sociedade.
A Srª diz em sua dissertação que “aquele que chega ao clínico é expoente máximo da loucura familiar ou bode expiatório”. Ou seja, o paciente é aquele que se ocupa, por meio da doença, de preservar a integridade e o equilíbrio dos outros membros da família (homeostase familiar). Poderia explicar melhor essa afirmação?
Nerícia - Essa pessoa é aquela que denuncia o fato de que as outras da família também têm um problema. É a pessoa que pede ajuda. Nem sempre a família reconhece que está passando por um sofrimento. Uma vez atendemos uma determinada família, mas quando fomos acolher os outros membros, percebemos que estes tinham um sofrimento muito maior. É preciso deixar claro para a família que não pretendemos julgar. Vamos retomar a história daquela família pelos seus pontos crucias. Depois da situação de crise, você começa a perguntando como foi que aquele casal se conheceu e levanta as dificuldades que enfrentaram. Assim, investigamos fatos que fazem as pessoas reviverem os aspectos mais dolorosos de sua história.
Qual o perfil da família de um psicótico?
Nerícia - Há muitos estudos sobre isso. A literatura fala da presença de uma mãe culpabilizadora e um pai inadequado e passivo. Há ainda uma dificuldade muito grande de verbalizar os sentimentos. Entre as principais características, estão a tentativa de manter problemas escondidos ou negá-los. Os problemas são percebidos com externos, os outros são culpados ao invés de tentar descobrir a fonte do problema. Essas famílias são pouco tolerantes as pessoas de fora da família, a expressão de afeição é precária, a comunicação é muito ruim. Essas famílias possuem regras muito duras e inflexíveis e são incapazes de pedir ajuda. O ponto de vista assumido pela família é muito rígido. O membro da família não se sente à vontade para tomar o caminho que deseja porque o pai não deixa, por exemplo. Nessas famílias, há segredos que ficaram guardados, mas que de alguma maneira afeta o comportamento do paciente. Há uma série de situações sobre as quais a pessoa não pode falar. Há também uma dificuldade de lidar com situações inesperadas. Alguns estudos feitos depois da Segunda Guerra Mundial mostraram que havia várias famílias que ficaram apenas com um ou dois membros. Algumas conseguiram se adaptar à nova situação, outras não. É essa capacidade que as famílias de um psicótico não têm.
Nerícia Regina de Carvalho Oliveira é psicóloga clínica do Hospital de Urgência e Emergência Clemetino Moura - Socorrão II. Graduada pela Universidade Federal do Maranhão(UFMA), especialista em Bioética pela UnB, mestre em Psicologia Clínica pela UnB, doutoranda em psicologia Clínica e Cultura pela UnB. Há cinco anos membro do GIPSI-Grupo de Intervenção Precoce nas Psicoses.
Publicado na revista Psique
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