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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Batalha contra o espelho

Por Roberta de Medeiros

As cirurgias plásticas viraram uma obsessão do cantor americano Michael Jackson. As intervenções começaram em 84 e não pararam mais. Em uma entrevista concedida em 1993 à apresentadora americana Oprah Winfrey, o astro pop descreveu sua personalidade como perfeccionista e "nunca satisfeito com nada", incluindo sua aparência.  Jackson não está sozinho. Afinal, quem nunca se sentiu insatisfeito diante do espelho ao menos por um dia? Mas há quem confira dimensões extremas à conhecida fábula do patinho feio e transforme o próprio corpo num verdadeiro campo de batalha. São pessoas que sofrem de uma desordem psicológica chamada dismorfofobia ou transtorno dismórfico, que faz com que elas alimentem idéias irreais sobre a própria imagem corporal.
 
É o caso da engenheira química C., de 39 anos, que teve sérios problemas devido à excessiva preocupação com sua aparência física. Dizia que seu rosto se tornava flácido e que suas bochechas estavam prestes a desabar. Começou a se sentir insegura a ponto de não sair na rua sozinha. Deixou de dirigir, ficando a maior parte do tempo em casa. Passou a ter espasmos no rosto e deixou até mesmo de falar. Exames clínicos, porém, não mostraram qualquer alteração na pele ou no tônus muscular do rosto de C., mulher jovem e de boa aparência. Ainda assim ela persistia em suas queixas quanto à face.
O distúrbio foi relatado pela primeira vez pelo psiquiatra italiano Enrico Morselli, em 1886. À época, foi descrito como um sentimento de feiúra ou defeito no qual a pessoa sente que é observada por outras, embora sua aparência esteja dentro dos limites da normalidade. Por isso, o distúrbio recebeu o nome de “hipocondria da beleza”. Somente nos Estados Unidos o distúrbio atingiria cerca de 5 milhões de pessoas ou 2% da população. “Trata-se de uma certeza, muitas vezes delirante, de que uma parte do corpo não está OK. Enquanto a pessoa que alucina, inventa  o mundo, o delirante vê o mundo com outros olhos”, compara o neurologista Edson Amâncio, autor do livro “O Homem que Fazia Chover”, da editora Barcarola.
“Em geral, as queixas envolvem falhas imaginárias ou leves no rosto ou na cabeça, como acne, cicatrizes, rugas ou inchaço”, diz. Dificuldades sociais e conjugais ocorrem com as pessoas que têm o transtorno, dependendo do grau de gravidade, a ponto de terem sua vida completamente desestruturada. “O prejuízo pode ser resultado do tempo que se gasta com a atenção ao corpo, em detrimento de outros aspectos da vida, quase sempre negligenciados”,  diz Amâncio. “Quem sofre da doença se olha com freqüência no espelho ou em outras superfícies refletoras para checar a aparência, o que pode consumir muitas horas por dia numa atitude compulsiva bastante difícil de resistir”, diz o neurologista. Outros, ao contrário, esquivam-se de espelhos em uma tentativa não bem sucedida de diminuir o mal estar e a preocupação.
- Camuflagem
As queixas de quem tem preocupação exagerada com o corpo, entretanto, são vagas. Muitas pessoas evitam descrever seus defeitos em detalhes, podendo se referir à sua "feiúra" em geral. Essas pessoas tentam camuflar seus defeitos imaginários com óculos escuros, bonés, luvas ou roupas. O psiquiatra e psicoteraupeuta Geraldo Possendoro, professor da Unifesp, lembra que a crença de que algo está errado com o corpo pode extrapolar todos os limites. “A pessoa pode se queixar que os poros do nariz estão muito abertos, por exemplo. Muitas vezes não há defeito algum ou defeito é supervalorizado pelo paciente”, diz Possendoro, para quem o problema muitas vezes está associado à baixa auto-estima.
Os indivíduos com esse transtorno freqüentemente pensam que os outros estão observando o seu "defeito", o que pode levar a uma esquiva das situações sociais que, levada ao extremo, chega até ao isolamento social. “Esses pacientes com freqüência buscam e recebem tratamentos para a correção de seus defeitos imaginários, em uma peregrinação por diversos profissionais, principalmente cirurgiões plásticos, sem, no entanto, corrigir os supostos defeitos”, diz Possendoro.
Alguns especialistas chegam a questionar se a anorexia poderia ser um caso de dismorfofobia, já que os indivíduos supervalorizam o seu tamanho do seu corpo e se angustiam com seu defeito imaginado. Já Possendoro defende que o diagnóstico diferencial entre anorexia do transtorno dismórfico. “Na anorexia o paciente tem um daltonismo para o próprio corpo, ela se olha no espelho e se acha muito gorda. O aspecto mais importante do tratamento é fazer com que ela adquira a crença de que ela é daltônica de que ela não pode confiar na imagem que ela faz do próprio corpo”, explica. Ele lembra que o transtorno também não pode ser confundido com transexualismo, no qual a pessoa tem corpo de homem, mas sente-se uma mulher.
O tratamento inclui antidepressivos e psicoterapia. A literatura, no entanto, aponta a possibilidade do transtorno seja, na verdade, um delírio somático, isto uma crença irreal (e incorrigível pela argumentação) sobre o próprio corpo. “Nesse caso, o tratamento incluiria a administração de antipsicóticos associados a antidepressivos”, diz Possendoro. 
 “Quanto à história familiar, não existem dados que estabeleçam um padrão familiar claro do transtorno dismórfico corporal com outros transtornos psiquiátricos”, diz Amâncio.
-Narcisismo
Para a psiquiatra Magda Vaissman, professora da UFRJ, transtornos de personalidade como narcisista, obsessivo-compulsivo e borderline podem predispor à dismorfofobia. “É muito frequente que o transtorno esteja associado ao narcisismo. São pessoas que estão mais preocupadas consigo do que com o outro, como o mito de Narciso, que se apaixonou pela própria imagem. Do ponto de vista psicanalítico, é um problema na elaboração do narcisismo primário. No complexo de Édipo, a criança sai do narcisismo parar ir ao encontro do outro. Mas isso pode não ser bem elaborado, dando origem à personalidade narcisista”, explica.
Em outros casos, a dismorfofobia está relacionada ao transtorno obsessivo compulsivo, no qual a pessoa se entrega a uma série de rituais de verificação do corpo marcas e cicatrizes para afastar um pensamento incômodo ou intrusivo. A diferença do paciente com TOC e relação àquele que sofre de dismorfofobia é que no primeiro caso ele está de convencido de que o pensamento intrusivo que leva à compulsão não é verdadeiro, embora não consiga se libertar, enquanto no segundo caso, a preocupação com o corpo é quase um delírio.  “O quadro pode se apresentar como uma compulsão, no qual a pessoa segue uma série de rituais ou pode ocorrer ao nível do pensamento, que são as obsessões”, analisa.
Ela lembra que a vigorexia, uma espécie de dependência por exercícios físicos associada ao culto à imagem, pode ser uma variante da dismorfofobia. “A pessoa nunca está satisfeita com o corpo, acha que pode perder massa muscular, mergulha numa rotina extenuante de exercícios e muitas vezes recorre aos anabolizantes para manter o tônus muscular”, diz Magda.
-Cultura do belo
Uma entrevista feita com 162 homens e 184 mulheres feita pela divisão de psicologia do Hospital das Clínicas em São Paulo mostrou que 69% dos entrevistados passaram pelo menos uma hora por dia pensando que não têm uma boa imagem. Mas o que leva cada vez mais pessoas a um descontentamento tão grande com a própria imagem?
O transtorno pode ser reflexo de uma sociedade obsessivamente preocupada pela estética corporal, que vende corpos em outdoors. Essa mensagem é amplificada pelos meios de comunicação. “A nossa sociedade finge que transtorno não é um problema. Há um individualismo exacerbado, as pessoas vivem isoladas, as famílias são desestruturadas...A cultura do belo incentiva a competição, o indivíduo vive mergulhado numa sensação de fracasso, ele sente de que nunca vai chegar lá”,  afirma Magda.
 “O problema é que a maioria das pessoas com dismorfofobia não procura atendimento psiquiátrico, já que a sociedade incentiva a cultura do belo”, analisa Magda. Outro motivo que afasta dismórficos dos consultórios é que muitos preferem se entregar ao bisturi. Pesquisa feita pelo Instituto InterScience, revelou que 90% das mulheres e 65% dos homens afirmam sonhar com mudanças no próprio corpo. Do total, 5% já tinham feito alguma plástica e 90% já faziam planos de realizar a segunda. Entre aqueles que nunca fizeram uma cirurgia plástica, 30% declararam que esperavam ter coragem para realizá-la.

Um estudo feito pelo Observatoire Cidil des Habitudes Alimentaires (Ocha) em um universo de mil mulheres revelou que 86% delas se dizem insatisfeitas com suas medidas. Apenas 14% alegaram estar satisfeitas com o próprio corpo. O Brasil é o segundo no ranking dos países que mais realizam cirurgias plásticas, metade delas puramente estéticas – 40% lipoaspiração, 30% mamas, 20% face. A maioria foi realizada em pessoas de 20 a 34 anos. O número de jovens que colocaram próteses para "turbinar" os seios aumentou 300% nos últimos dez anos.

E não adianta o familiar contrariar o paciente que sofre do transtorno. “Quando mais oposição se faz, mas se cria uma resistência por parte do paciente. O ideal é não incentiva-lo. O que a família pode fazer é mostrar que há outros prazeres na vida, que não o culto ao corpo, e fazê-lo entender que ele sofre de uma doença”, aconselha Magda.
Essas pessoas podem apresentar fortes ideações suicidas. 13% dos pacientes psiquiatricos britânicos apresentam o transtorno. 75% das pessoas com dismorfofobia não se casam ou se divorciam, 70% tem ideações suicidas e 25% realmente se suicidam. 20,7% das pessoas que fazem cirurgias de rinoplastia tem um possível diagnóstico de dismorfofobia. Pesquisa feita pela Universidade de Utrech, na Holanda, mostra as mulheres que se submetem operações de implante mamário apresentam risco três vezes maior de cometer suicídio em relação às demais mulheres. 82,6/% das pessoas que sofrem o transtorno se sentem insatisfeitas com os resultados das cirurgias. Existe a crença de que a próxima intervenção será a última. E assim, entram num circuito no qual a insatisfação é cada vez maior. Muitos casos vão parar na Justiça.
O problema nos faz questionar sobre a ética no exercício do cirurgião plástico. “O cirurgião plástico deveria estar preparado para identificar a dismorfofobia. O ideal seria uma interação entre o cirurgião e o psiquiatra ou o psicoterapeuta. Muitas vezes o profissional faz a correção daquilo que é um grande incômodo para o paciente, e esse desconforto em relação à aparência se desloca para outra região do corpo”, observa Amâncio.

Transtornos obsessivos


Pacientes com transtornos obsessivos têm uma maior atividade em uma determinada região do cérebro, o córtex pré-frontal, o que os leva a ter a procedimentos de controle exagerados, como retornar a própria casa várias vezes para checar se o fogão ou o ferro de passar foram desligados. Ou seja, estão sempre em estado de alerta. Dos transtornos psiquiátricos, o que mais se assemelha em critérios diagnósticos com a fobia social é o transtorno dismórfico corporal. Em ambos, os pacientes apresentam ansiedade social elevada, esquiva de situações sociais e medo de crítica e comentários adversos sobre sua aparência. Isolamento social e falta de habilidade social geralmente estão presentes nos dois casos.

Heródutus

Transtorno dismórfico corporal é um novo nome para um velho transtorno. Ele 0tem sido descrito nas literaturas européia e japonesa por uma variedade de nomes. A primeira referência aparece na história de Herodutus, no mito da garota feia de Esparta, que era levada por sua enfermeira, todos os dias, ao templo para se livrar da sua falta de beleza e atrativos.
Neurose compulsiva

Emil Kraepelin (1856-1926), grande psiquiatra alemão, considerado o criados da moderna Psiquiatria devido às suas enormes contribuições científicas contidas ao longo das oito edições de seu Tratado de Psiquiatria, ocupou-se do tema dismorfofobia, introduzindo-o na oitava edição do “Tratado sob a Rubrica de Neurose Compulsiva”. Considerou a dismorfofobia como uma das formas clínicas da série de medos obsessivos que surgem do contato com outras pessoas. É desta forma que a dismorfofobia assemelha-se à timidez, ao medo de provas e à antropofobia, entre outros.

Homem dos Lobos
Entre os cacos clínicos publicados por Freud, o do paciente Serguéi Constantinovitch Pankejeff ficou conhecido como o “Homem dos Lobos”. Ele iniciou sua análise com Freud em 1910 e apresentava, entre outros sintomas, uma preocupação excessiva com a aparência de seu nariz. Antes de iniciar a análise com Freud, já havia feito vários tratamentos e se consultando também com os médicos Theodor Ziehen, de Berlim, e Emil Krapelein, de Munique. Esse histórico, com certeza, aumentou o interesse de Freud pelo caso, pois considerava esses dois importantes médicos como “rivais” de profissão.

Tipos de delírio
Alguns autores defendem que a dismorfofobia pode se apresentar como um tipo de delírio que se caracteriza pela presença de uma imagem distorcida em relação ao corpo. Conheça os tipos de delírio:
Delírio erotomaníaco
A pessoa acredita ser amada por uma pessoa que ocupada posição superior, como autoridades e artistas.
Delirio de grandeza
A pessoa está convencida de que tem ligação com personalidades importantes ou que tem um talento especial ou possui grande fortuna.
Delírio de ciúme
Sem motivo justo, a pessoa acredita que está sendo traída. Ela toma medidas extremas, às vezes tiranas, na tentativa de controlar o parceiro.
Delirio persecutório
É o tipo mais comum entre os paranóicos ou delirantes crônicos. O delírio costuma envolver a crença de estar sendo vítima de conspiração, traição, espionagem, perseguição.
Delírio somático
São formas de delírio em relação ao corpo.  Os mais comuns dizem respeito à convicção de que a pessoa tem deformações de certas partes do corpo.

Os outros transtornos somatoformes são:

O transtorno de somatização (historicamente chamado de histeria ou síndrome de Briquet) é um transtorno polissintomático que inicia antes dos 30 anos, estende-se por um período de anos e é caracterizado por uma combinação de dor, sintomas gastrintestinais, sexuais e pseudoneurológicos.
O transtorno somatoforme indiferenciado que caracteriza-se por queixas físicas inexplicáveis, com duração mínima de 6 meses, abaixo do limiar para um diagnóstico de transtorno de somatização.
O transtorno conversivo envolve sintomas ou déficits inexplicáveis que afetam a função motora ou sensorial voluntária, sugerindo uma condição neurológica ou outra condição médica geral. Presume-se uma associação de fatores psicológicos com os sintomas e déficits.
O transtorno doloroso caracteriza-se por dor como foco predominante de atenção clínica. Além disso, presume-se que fatores psicológicos têm um importante papel em seu início, gravidade, exacerbação ou manutenção.
A hipocondria é preocupação com o medo ou a idéia de ter uma doença grave, com base em uma interpretação errônea de sintomas ou funções corporais.
O transtorno dismórfico corporal é a preocupação com um defeito imaginado ou exagerado na aparência física.
O transtorno de somatização sem outra especificação é incluído para a codificação de transtornos com sintomas somatoformes que não satisfazem os critérios para qualquer um dos Transtornos Somatoformes.
Fonte: Psiqweb /G J Ballone
Critérios Diagnósticos Transtorno Dismórfico Corporal
A. Preocupação com um imaginado defeito na aparência. Se uma ligeira anomalia física está presente, a preocupação do indivíduo é acentuadamente excessiva.
B. A preocupação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
C. A preocupação não é melhor explicada por outro transtorno mental (por exemplo, a insatisfação com a forma e o tamanho do corpo na anorexia).



Violência anunciada

Por Roberta de Medeiros
O bullying fazia parte da vida de Wellington Menezes de Oliveira, 23, que invadiu a escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, matou 12 alunos e se suicidou. Um colega de sua turma contou que ele falava sozinho, era humilhado por outros estudantes e permanecia sozinho no recreio. Ele era chamado de “suingue”, por andar mancando de uma perna. Os estudantes o apelidaram de Sherman, um nerd, personagem do filme “American Pie”. Meninas encarnavam muito nele. Passavam a mão e o chamavam de veadinho. Garotos amarravam o cadarço dele à mesa e um dia o jogaram na lixeira", lembra Rodrigo França um dos colegas de Wellington.
Alguns especialistas ventilam a hipótese do atirador possuir algum tipo transtorno mental, talvez desencadeado pelo estresse sofrido pelo bullying. A tragédia suscita a idéia de que algo precisa ser feito para mudar esse ambiente de violência na escola. Uma pesquisa realizada pela Pan Brasil em 2008 mostrou que 70% dos alunos de escolas brasileiras pesquisadas alegam terem sido vítimas de violência na escola, sendo que 84% consideraram a sua escola violenta. Os pesquisadores entrevistaram 12 mil estudantes.

Outro levantamento realizado pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Proteção à Infância e à Adolescência em 2002 envolvendo quase seis mil alunos do sexto ao nono do ensino fundamental de 11 escolas do Rio de Janeiro, mostrou que 40,5% dos estudantes admitiram ter algum envolvimento com o bullying, sendo 16,9% como vítimas, 12,7% como agressores e 10,9% afirmaram serem vítimas e também agressores.

Pesquisas mostram que as vítimas de agressões na escola podem desenvolver depressão e transtornos de ansiedade, o que pode culminar em suicídio. E aqueles que praticam violência contra os colegas na escola podem apresentar transtornos de conduta na adolescência. Quem comenta essas questões é o psiquiatra Gustavo Teixeira, professor da Bridgewater Station University, em Massachusetts, Estados Unidos, e autor do “Manual Antibullying”, que acaba de ser publicado pela editora Best Seller.

Teixeira cursou Medicina nos Estados Unidos, onde aprendeu sobre programas escolares de inclusão de crianças com necessidades especiais. Especializou-se em Dependência Química na UFRJ e em Saúde Mental Infantil na Santa Casa do Rio de Janeiro. Pesquisador do comportamento infantil, ele tem se dedicado cada vez mais à aplicação de cursos para professores.

Psique- O fato de ter sido vítima de bullying explica a conduta de Wellington Menezes de Oliveira , que matou 12 alunos de uma escola do Rio de Janeiro?

O bullying isolado não é causa desse tipo de comportamento. Mas as agressões sofridas na escola podem ser o gatilho que desencadeou outras doenças psiquiátricas. No caso de Wellington, o bullying estava associado à esquizofrenia. Seus delírios estavam relacionados à temática escolar. Tudo indica que ele estava magoado com a escola, provavelmente não recebeu a ajuda que precisava.


Psique- O bullying está sempre relacionado com uma tentativa de estabelecer uma relação de poder em relação aos demais?

Gustavo- É importante lembrar que, por definição, o bullying se caracteriza pelo comportamento agressivo no ambiente escolar e acadêmico e essa relação de poder diante dos demais sempre está presente. Essa violência é sempre repetitiva e provoca sofrimento. São atos de agressão física, verbal, moral ou psicológica. No caso do bullying, assistimos uma relação desigual de poder em que um ou mais alunos tentam dominar e humilhar os demais. Vemos que crianças agressivas têm uma maior capacidade de manipular outras crianças, enquanto as vítimas são crianças que não conseguem pedir ajuda.


Psique- Quando alvo de bullying, meninos e meninas são afetados de formas diferentes?

Sim, normalmente os meninos são mais agressivos e partem para agressão física, enquanto o bullying nas meninas pode ser mais escondido, através de isolamento, exclusão, difamação.

Psique- Qual o perfil psicológico dos agressores e das vítimas?

Gustavo- Os agressores são crianças mais habilidosas na comunicação, têm facilidade de mobilizar outras crianças. Eles têm uma agressividade exacerbada, são fisicamente mais fortes, são muito autoconfiantes e podem até ser populares entre os colegas. Eles costumam confrontar pais e professores, são mais falantes e mais extrovertidos. O agredido tem poucos amigos, geralmente são tímidos, retraídos e mais fracos fisicamente. Eles podem apresentar rendimento ruim na escola, são solitários e passam o recreio sozinhos. Esses alunos têm um prejuízo muito grande auto-estima, eles não conseguem pedir ajuda, por medo ou por acreditar na impunidade, o que faz com que o problema continue. Essa postura passiva das vítimas, que respondem as agressões com choro, é visto como um sinal de que elas são alvos fáceis pelos agressores. Mas é certo que há exceções. Eu atendi um caso de uma criança que era vítima de bullying porque era a melhor aluna da sua turma, mas ela tinha uma dificuldade de comunicação que a impedia de pedir ajuda.

Psique- Quais os transtornos mentais desencadeados nas vítimas do bullying? O bullying pode trazer problemas psiquiátricos na adolescência?

Gustavo- O bullying pode funcionar como desencadeador de estresse e causar prejuízo da autoestima. As agressões sofridas na escola funcionam como um gatilho que desencadeia quadros psiquiátricos como a depressão e o transtorno de ansiedade em crianças que já têm predisposição genética para desenvolver esses distúrbios. É muito comum que essas crianças desenvolvam fobia escolar. Elas passam a ter um comportamento evitativo, apresentando queixas físicas antes que ir para escola, como dor de cabeça, dor de estômago, enjoo. Em casos extremos, o quadro pode culminar no suicídio.


Psique- Os agressores, quando impunes, têm maior risco de apresentar transtornos mais tarde?

Sim, estudos indicam que muitos agressores apresentam transtorno de conduta na adolescência. Esses estudantes apresentam mais chances de fazer uso abusivo de álcool e drogas, maior envolvimento em brigas e com o crime, podem andar armados, apresentar problemas com a justiça e atitudes delinqüentes.

Psique- O Sr. menciona que crianças que são ao mesmo tempo vítimas e agressores têm maior risco psicopatológico...

Gustavo- O bullying envolve vários personagens. Existem as crianças que são agressoras, as vítimas e as testemunhas, como há também aquelas que são ao mesmo tempo agressoras e vítimas. Geralmente são crianças mais impulsivas, o que nós chamamos de vítimas provocadoras. Elas irritam outros alunos, o que desperta a agressão de outras crianças. São agressivas tentam se vingar daqueles que as ataca.

Psique- O Sr diz que violência gera violência. Ou seja, crianças que são vítimas de humilhações e violência em casa tendem a repetir esse comportamento na escola...

Gustavo- Quando a criança é vítima de agressão em casa, ela pode aprender que o comportamento agressivo é normal. O pai, por exemplo, pode pedir à criança para bater nos demais, como se isso fosse natural. Crianças que vivem em lares pouco harmoniosos, marcados pela violência e com pouco diálogo têm maiores chances de desenvolvem um comportamento agressivo. A permissividade dos pais também pode gerar crianças desafiadoras, com comportamento agressivo na escola. A violência em casa pode favorecer o bullying, tanto no caso dos agressores, quanto no caso das vítimas, que são maltratadas pelos pais e que chegam à escola com a auto-estima muito prejudicada, o que a torna um alvo fácil em relação aos demais. 


Psique- O temperamento da criança opositiva e desafiadora também pode ter um componente genético, não é?

Gustavo- Tudo relacionado a nosso comportamento é genético. Um temperamento mais impulsivo e agressivo, o que predispõe a criança a ter um comportamento hostil no ambiente escolar. Já as crianças mais calmas e menos impulsivas estão mais predispostas a figurar como vítimas. 

Psique- O risco de tentativa de suicídio entre as vítimas é significativamente maior?

Gustavo- A literatura mostra que, muitas vezes, há uma questão psicopatológica envolvida nas tentativas de suicídio, como a depressão, que funciona como um gatilho para os pensamentos de morte a ideação suicida. As crianças alvos de bullying podem ainda apresentar insônia, baixa auto-estima e desenvolver transtornos de ansiedade. São crianças com níveis de estresse muito altos, o que prejudica seu rendimento na escola.

Psique- Qual o maior obstáculo para estimular a cultura pacifista na escola?

Gustavo- O maior desafio é conscientizar pais e educadores sobre o bullying, de modo que eles possam estimular nas crianças valores éticos, o respeito às diferenças. E mostrar a esses agentes o quanto é importante combater o bullying.


Psique- É válido ensinar esportes de luta para que a criança alvo de agressão possa se defender?

Gustavo- Sim. Esportes coletivos podem ajudar na socialização das crianças mais retraídas, estimulando valores como o respeito à hierarquia, à moral e à ética, além de melhorar a auto-estima. O objetivo dos esportes de luta não é tornar o aluno apto à briga, mas desenvolver a autoconfiança, lembrando que o agressor procura crianças inseguras. Noto que os professores de educação física são habilidosos quando se tem em mente incluir crianças como dificuldades de comunicação.

Psique - É comum os pais aumentarem o isolamento dos filhos na tentativa de protegê-los das agressões...Essa superproteção é prejudicial?

Gustavo- É importante que os pais tenham em mente que essas crianças vítimas de bullying têm uma dificuldade de interação social. Tanto os pais quanto professores devem, ao contrário, estimular a socialização. Isolar na tentativa de proteger pode ser até pior, estimulando o bullying.

Psique- Como foi sua experiência no trabalho com adolescentes em escolas fora do país?
Trabalho há dez anos com saúde mental na infância e ofereço palestras sobre bullying. Notei que o tema despertava muito interesse entre os educadores, que não sabiam como proceder em relação a esse problema. Daí surgiu o meu projeto, o Manual Antibullying, com a proposta de oferecer um suporte tanto para pais, quanto para educadores. No exterior, há um grande interesse dos pesquisadores em relação ao bullying. Há programas nas escolas para conscientizar pais e educadores sobre os impactos negativos do bullying.

Conseqüências do bullying para as vítimas

-Desinteresse pelos estudos
-Prejuízo acadêmico
-Reprovação escolar
-Mudanças sucessivas de escolas
-Abandono escolar
-Estresse
-Insegurança
-Medo
-Problemas de auto-estima
-Isolamento social
-Insônia
-Ansiedade
-Fobia escolar
-Depressão
-Suicídio

Conseqüência para os agressores

-Uso abusivo de álcool e outras drogas
-Maior envolvimento em brigas corporais
-Criminalidade
-Posso de armas
-Problemas com justiça
-Atos delinqüentes
-Furtos
-Agressões
-Destruição do patrimônio público
-Repetição do comportamento na faculdade e no trabalho


O que os pais podem fazer:

-Conversar com o filho sobre bullying
-Mostrar a importância do respeito mútuo e de saber tolerar as diferenças de cada um
-Dizer que a violência deve ser evitada
-Tentar identificar as razões para o comportamento agressivo
-Procurar a escola e conversar com professores sobre o problema


Tipos de agressões:

-Física: bater, chutar, empurrar, derrubar, ferir, perseguir.
-Verbal: xingar, ameaçar, intimidar, gritar.
-Moral: amedrontar, apelidar, discriminar, humilhar, intimidar, dominar, tiranizar, excluir, assediar e perseguir.
-Sexual: assediar, insinuar, abusar e violentar.


Como identificar se um aluno está sendo alvo de bullying

-Conquista poucos amigos
-Passa tempo do recreio sozinho
-Chega em casa chorando sem explicar o motivo
-Tem medo de ir à escola
-Chega em casa com o material destruído
-É xingado, ridicularizado ou recebe apelidos pejorativos na escola
-Tem machucados, arranhões, roupas rasgadas, manchadas de giz ou caneta
-É agredido fisicamente, mas não é capaz de se defender
-Está envolvido em brigas levando sempre a pior
-É excluído das brincadeiras
-Apresenta uma queda no rendimento escolar
-Parece estar sempre infeliz e desmotivado para escola
-Fica inseguro nos momentos que antecedem sua ida à escola
-Prefere a companhia dos adultos no recreio
-Mostra-se inseguro e ansioso na sala de aula
-Nunca apresentou nenhum amigo aos pais
-Nunca vai à casa dos colegas de escola
-Dorme mal e tem pesadelos com temática escolar